Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Camarote

Como é de seu conhecimento, leitor, o fato de eu estar morto, a meu ver, é absolutamente irrelevante e incapaz de impedir a escrita de alguém. Quanto mais, a minha escrita.
É gentileza de sua parte homenagear-me por ocasião dos cem anos de minha passagem a este camarote. Ouso dizer que tal homenagem acrescenta uma tarefa supérflua aos mestres, ao convidá-los a falar sobre minha importância, mas, ao mesmo tempo, afirmo que o fazem de bom grado, sem qualquer interesse pecuniário, visto que sua profissão é a mais reconhecida do país. Se me permitem, não como escritor, mas “mestre”, título cuja honra me conferem aqui e ali... tomo a liberdade e inscrevo-me no concurso para expor meu olhar embaçado de espírito onipresente em livros soltos no mundo.
O concurso toma como mote “a importância de meus livros nos tempos de hoje”. E eu, sem falsa modéstia ou inexequível pretensão, convido-o a pensar “a relevância dos tempos de hoje na leitura de meus livros”.
Sempre fui um artista, embora meu glamour literário não tenha sido exatamente como esses, dos televisivos de atuais. Em todo caso, registro o desimportante detalhe de que “um artista ou é um artista de seu tempo, ou não é de tempo nenhum”. Sobre isso, penso ainda que citar a inteligência sagaz de Picasso, um morto com ideias nascidas posteriormente a mim, não altera a gravidade ou o efeito de citar clássicos anteriores. Não, que os helenos não caibam no hoje. Sempre cabem. Percebo-os mais do que nunca, cultuados em Academias e academias. Acontece que os tempos mudam e os cânones também. Assim, percebemos que somente o universal permanece. Eis que denoto, então, elementos universais equivalentes entre o meu ontem e o seu hoje.
Observo, por exemplo, que por anacronismo tecnológico, a Simão Bacamarte não foi possível pôr videocâmaras dentro da Casa Verde. No entanto, mais do que nunca, percebe-se com nitidez o quanto suas teorias sobre a razão e a loucura fazem pleno sentido em nossos cubículos no mundo de hoje.
Além disso, quantos Quincas filosofam no ar e reconhecem nos cães uma fidelidade que o ser humano se vê incapaz de conceber ou realizar... Falemos talvez da liberdade, das relações sociais entre negros e brancos – neste lugar onde a escala tonal já extrapolou até impressionismos europeus.
Sei ainda, que muitos arguirão que faltam leitores preparados no tempo de hoje. Nisso, pondero uma comparação entre o agora e meu tempo remoto, quando os “alfabetizados” em geral eram poucos, mas não eram analfabetos. Mesmo ali, meu alcance nem era tão amplo. Reconheço vantagem somente no fato de que antes os iletrados ouviam atentamente leituras públicas ou xeretices noticiadas. Hoje, não. Tudo é pressa. Há quem leia sem ler. Sempre houve. E há sempre quem escreva a história sem tomar a palavra.
Se o leitor prefere questionar a casmurrice de Bentinho nesse mundo de baladas liberais, de meu camarote póstumo posso afirmar: nada muda significativamente quando o assunto remexe amores – amores que no fim “serão sempre amáveis”, como sempre revelaram os poetas, estorvos necessários no mundo. As crises, os ciúmes, as desconfianças de ontem e hoje permanecem na mesma medida. Basta que se observem as conversas de bar ou de consultório. Em leitura, falta-nos de tudo um pouco, tanto quanto em minha época. E, em angústia e desigualdade social, nosso quinhão não parece ter diminuído tanto, quanto continuam afirmando os tritataranetos de nossos mesmos políticos.
Por fim, sem querer alongar o entalhe desta prosa intrometida, reafirmo sem falsa modéstia o fato que é comum a todos: cada um é só cada um. Embora seja meu cada discurso que um dia ousei registrar, o entendimento, a entrelinha branca, não é de minha conta. É de cada leitor que a enfrenta. É também cada uma, una... uma, entre muitas... errantes como nós, que viemos ao mundo recebendo este confuso e agridoce legado. Guardo, portanto, a impressão de que não é a obra, sozinha, que exige leitura. O eixo universal que atravessa a convenção do tempo continua o mesmo, ligando-nos a tudo e a todos, sempre, de alguma forma. E não é à toa que lhe entrego estas palavras, conterrâneo leitor. Haverá tempo para escrever suas próprias linhas a partir do que vi e escrevi, bem como do que não escrevi naqueles textos. E, é claro, cabe-lhe, ainda, escrever seu tempo a partir de meu silêncio póstumo.
São Paulo, 14 de março de 2008.
R. B.
* Texto premiado no concurso em homenagem a Machado de Assis, promovido pela Academia Brasileira de Letras/Folha Dirigida - “A importância de Machado de Assis um século depois de sua morte”, setembro de 2008.
** Imagem: "Travessias" - R. B. - colagem sobre papel, novembro de 2006.