Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 31 de dezembro de 2011

Passarinho que se debruça...


“A escola resistiu a socializar a escrita, sendo que a leitura foi socializada. Ler significa ver o mundo pelos olhos do outro. Escrever significa expressar a própria identidade. Querer que todo mundo escreva e se comunique é que é ser revolucionário.”
(Elvira Souza Lima, antropóloga e neurocientista, em depoimento à revista Língua Portuguesa, de setembro, 2011).


Quando escolhi a metáfora roseana para abertura de um blog sobre livros, literatura e leitura, tal aforismo me trazia um sentimento promissor.  Ainda que no contexto original a imagem se refira a um personagem de intenções duvidosas, agora, deslocada para o novo lugar, eu a lia como um estímulo ao registrar as coisas que tantas vezes eu me inclinava a dizer, mas não dizia – por medo ou não sei bem o quê.
Um dia desses, quando li a notícia de que vários Estados norte-americanos aboliram o ensino de letra cursiva nas escolas, foi essa mesma sentença que me veio em mente. Puxa! Custei a entender o que tanto me incomodou na decisão... Não foi nem a visão simplista de um ou outro professor que cogitou a ideia para “facilitar o trabalho”. Percebi o elo entre ler e escrever em meu cotidiano. E somente hoje pude observá-lo com mais cuidado. Ele se manifesta no que não li e, na minha atual condição, em tudo o que tenho pensado, mas que apesar da vontade, não cheguei a escrever.
                                                          
O que li e o que não li
Tenho certeza de que alguém já disse isso: “a época da faculdade é o período em que mais se lê e menos se lê", pois tudo é picotado. Sempre fica a promessa de um dia ver o que o autor dizia em outros capítulos... e, ao que me parece, a medida que se avança nos estudos, essa angústia  também se amplia, se desdobra em pensamentos, listas, apontamentos e divagações.
Este ano decidi dar mais atenção este tipo de circunstância em que o ler o não ler se colocam como paralelos de modo mais evidente, e por este caminho me deparei com uma profunda necessidade de escrever. Iniciei um esboço de pesquisa sobre os discursos contraditórios que perpassam situação da leitura no Brasil e, no meu primeiro final de semana de férias, resolvi registrar algumas das minhas próprias contradições.
A primeira tem a ver com o volume de leituras orientadas pelo curso de Sócio-psicologia, que me jogam na certeza socrática do “só sei que nada sei”. Li tanto que agora tenho a (in)segurança saudável para afirmar que há muito ainda a ler, a refletir e a fazer...

Leitura - imposição ou escolha
Justamente ao atrelar o curso à pesquisa, percebi um fator não alcançado pela publicação nos Retratos da Leitura no Brasil: até mesmo o texto indicado como obrigatório em uma instituição de ensino é uma escolha. Todos os dias vejo pessoas que se contorcem em conduções lotadas para chegar à aula com o texto lido, enquanto outros deixam de lado, ou apelam para o “resumão”.  Parei uns alguns instantes pensando nisso e parte da minha angústia por tudo que não tive tempo de ler, já começou a se dissipar,  pois na maior parte das vezes tenho a sensação quase infantil de “ter feito a lição de casa”.
Aos poucos fui recordando também quantas leituras (não obrigatórias) enriqueceram minhas descobertas em 2011 e agora já me sinto mais confortável em refazer as velhas promessas de retomar textos no próximo ano.
Aliás, a quem duvida que um dia isso se cumpra, com satisfação devo dizer: é possível cumprir – claro que renunciando ao turbilhão das novidades... É preciso encaixar-se no tempo presente, com uma paciência que já não se vê por aí.
Neste ano que se fecha, finalmente, li alguns textos há muito adiados... Chego a achar que fiz as pazes com Freud, me aproximei de Bourdieu... Mas acho que minhas estrelinhas de boa aluna virão por ter relido Guimarães Rosa, Mia Couto e Alberto Manguel. Estou descobrindo Jorge Amado, revisitando Drummond, Clarice e Bandeira. Revejo meu mundo em letra impressa com o apoio essencial de Ezequiel Theodoro da Silva, fundamento de minhas reflexões.
Até aqueles livros adiados desde o colegial (e que não me perguntem os anos envolvidos nisso), finalmente começam a chegar com mais comprometimento, com mais paciência, e, se não “prazer”, pelo menos “aceitação”. Sim. Eu como qualquer outro leitor, tenho meus momentos de preguiça, cansaço, indisposição... E vi, no decorrer do ano, uma lista infinita de livros desejados, queridos, admirados, que nem por isso tive tempo ou condições de ler. Ficarão em paz numa pretensiosa lista de leituras. Não adianta nada exigir mais do que me é possível. Reconheço ser eu mesma um desses sujeitos desconcentrados do século XXI. Estou eu também imersa em demandas externas que me obrigam a adiar o que quero ler, pensar, fazer, dizer... e, principalmente, escrever.

Do tempo de ler ao tempo de refletir e escrever
Ao ouvir as inquietações da educadora Simone Scifone na Semana de Valorização do Patrimônio Histórico e Cultural da Cidade de São Paulo, percebi que, de fato, às vezes o deixar  de ler e o deixar de fazer são a única maneira de abrir espaço para a produção de conhecimento e a sistematização do que se pratica. Escrever é tão importante quanto ler. Em tempos de internet, mais do que nunca, cada um deve ter garantido o direito de manifestar sua presença no mundo, mas sem pressa, sem pressão, sem opressão.
Vejo que neste ano, entre tudo o que li e o que não li, estavam os meus pensamentos mais ricos: aqueles repletos de dúvidas. São eles que me arremessam a novas leituras, novas práticas e novos olhares. São eles que me fazem pensar que apesar de toda a correria, todas as falhas, o ano foi instrutivo, novo e bom.
Mas o que dizer da experiência de quebrar o braço direito, bem no dia em que comecei a escrever este texto? Algumas amigas me disseram que este “repouso forçado” era uma parada necessária que eu vinha adiando, um momento de descanso renegado até que a vida num breve escorregão deu um jeito de me cobrar.
Talvez elas tenham razão. Mas a queda também me fez ver minha própria fragilidade (o braço protegendo a cabeça...). E aqui estou eu no meu “repouso”: lendo com uma ampliada necessidade de escrever.

As letras e os dias...
Mais do que nunca pensei sobre o impacto da abolição da letra cursiva entre os norte-americanos. Porém, dessa vez, olhei para o fato sem meu vício intelectualóide de tentar entender ou explicar. Apenas me vi de volta àquela dificuldade esquecida: nestes 40 dias de braço engessado estou reaprendendo minha caligrafia, desta vez com a mão esquerda. É como se outra pessoa aparecesse em mim neste novo esforço de escrever como pensar. Pra quem não sabe, o manuscrito ainda tem um peso grande em meu dia a dia. Gosto de anotar tudo, revirar cadernos e papéis, rabiscar antes de ligar o computador. É somente um hábito, um capricho, ou outro vício impregnado ao meu raciocínio – um vício do qual não desejo me libertar. Algo que me faz falta neste exato momento em que me atrapalho toda ao pinçar com a esquerda as letrinhas soltas no teclado.
Como dizia, desde setembro a questão da letra cursiva também vinha fazendo parte das minhas leituras, mas o ponto exato de minha angústia ainda não estava claro. Veio agora em uma experiência de perda temporária desta habilidade. Há elementos afetivos, psicomotores e até criativos envolvidos em meu hábito. Mesmo que sejam contextos totalmente diversos, tenho a impressão de que este é um daqueles fatos que merecem uma discussão mais extensa do que a sociedade já adaptada aos argumentos de 140 caracteres está disposta a realizar.
Decerto, eu e muitos da minha geração – que por algum descuido não acompanharam o ritmo da dança tecnológica das cadeiras – tendemos a estranhar que uma habilidade (supostamente) tão arraigada à cultura ocidental possa ser extraída assim, sem dor. 
Depois de ter lido o texto “Mãos atadas”, de Juliana Holanda, na revista Língua Portuguesa, de setembro/2011, percebi que separar a socialização da leitura e da socialização escrita implica mais que um retrocesso, uma espécie de atropelamento de direitos. Por mais que eu reconheça as considerações colocadas por pedagogos, sei que há mais alguma coisa não contemplada. Tanto aqueles que destacam esta transformação como uma etapa da evolução, quanto àqueles que salientam o desenvolvimento cognitivo vinculado ao processo linear da escrita sabem que há mais valores em jogo do que o grande público se dispõe a perceber. 
Não tenho condições de entrar no aspecto pedagógico da discussão, mas confesso que já passei daquela primeira impressão de que “chegamos ao final dos tempos”. A decisão tomada no contexto americano não é um consenso. Porém, lá os processos de aprendizagem da língua oficial seguem caminhos diferentes das listas classificatórias pseudo-ensinadas no Brasil. Há que se pensar em um conjunto de fatores, inclusive, econômicos, antes que se saía por aí propondo uma decisão similar em nosso país. Um professor iniciante nos EUA ganha em média 35 mil dólares por ano– o que equivaleria a pouco mais de 5600 reais por mês. Portanto, o grau de seu envolvimento profissional, do ponto de vista da subsistência e do tempo, já é um diferencial a ser tomado em consideração.
Enfim, no Brasil, antes de um passo como este, ainda há muito que ler, construir e oferecer aos cidadãos. Não estamos prontos. Ainda nos faltam, por exemplo, condições para formar professores como leitores plenos, com o domínio desta tecnologia milenar que é a escrita. Poucos se permitem usá-la de fato, na tentativa de alçar voo, ver o mundo de maneira mais ampla, a fim de vasculhar novos caminhos.




quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sopros e entrelinhas

“Nada se parece mais com uma casa em ruínas do que uma casa em construção.”
Jean Cocteau

 


São fios, redes, nós, laços e embaraços. O que é arte? O que é fazer arte? Até que ponto a arte se instaura como espaço de mistificação, sacralidade, hermetismo? Até que ponto uma obra de arte pode despertar questionamentos ou atitudes no público? Até que ponto cabe ao autor delinear os limites desta relação?
Ao observar a instalação Sopros, realizada por Nair Kremer, na Praça Buenos Aires, é possível que muitos estranhem um intermitente emaranhado disforme. De fato, o resultado ao final de cada tarde destoa das linhas poéticas que compõem a exposição Oxigênio 3. No entanto, é justamente nesta diferença que se pode mais uma vez encontrar a mescla da artista e da arte-educadora. A liberdade, a interação e o estímulo à autonomia são fundamentos de sua proposta de educação pela arte (ou arte como educação). Ideais concretizados, tanto em projetos sócio-culturais na periferia paulistana, quanto nas atitudes cotidianas de mãe, amiga, e avó. Onde Nair está, há sempre algum burburinho, algum sinal de movimento. Estas referências, quando colocadas no contexto de uma intervenção de arte contemporânea no espaço público, tornam-se um diferencial, uma identidade e uma espécie de estopim. Sim. Os trabalhos de Nair costumam ter um caráter deflagrador. Seja no campo das ações, seja no campo das reflexões.
Por exemplo, algo que esta nova instalação trouxe à tona, diz respeito ao modo como geralmente se lê a noção de “liberdade”. Este é um daqueles trabalhos em que o artista não tem “controle absoluto” sobre a obra. E, nesse caso, acolher o “acaso” e até o “caos” faz parte do processo. Mas note-se que este gesto de acolhimento e generosidade diante das atitudes do público coautor é apenas uma das etapas. O trabalho não se limita a acolher o que vier. Ele está inscrito em um contexto específico que merece atenção. É importante lembrar que no ano anterior, no mesmo local, a instalação Um poço fitando o céu desencadeou uma série de processos criativos, não somente na artista, como nos frequentadores da praça, tecendo uma rede, também repleta de intervenções e performances não planejadas.
Note-se que os armários e gavetas que há alguns anos são sinônimos de abertura, interação e ressignificação, dessa vez são eles mesmos deslocados para novos sentidos. O que antes era um movimento que partia do mergulho ao interior representado nas gavetas (e no “poço” de Fernando Pessoa), agora se propaga das gavetas em direção ao espaço externo. É dali que partem os fios, as redes, as matérias e as inspirações... Da mesma forma, se nas instalações anteriores a ação do público se dava no interior das gavetas, com objetos recombinados a cada manuseio, desta vez, a liberdade se expressa, inclusive, esvaziando-as. Expondo vínculos, conflitos e rupturas, numa rede ou emaranhado que se estende em várias direções. O que mais isso tudo nos diz?
Aos que reconhecem na arte um discurso sobre o fazer, cabe pontuar o bom hábito que a artista tem de documentar os seus processos. Sim, pois investigar passos e detalhes deste “evento instalação” pode ser uma experiência reveladora de pontos nem sempre notados na visita ao local.  É somente na documentação, por exemplo, que se vê como as primeiras linhas e redes, amarradas pela artista às árvores e galhos, traziam uma proposta estética apolínea, comedida – por sinal, coerente com a poética visual estabelecida no espaço todo. É na relação com o público que a visualidade se transfigura. As imagens trazem o envolvimento afetivo e “provocativo” dos participantes. Cabe perguntar, então, até que ponto esta instalação, ao destoar dos outros trabalhos, não trouxe à tona um uso do parque como um ambiente sacralizado – um “cubo verde”, embutindo o “cubo branco”?

Por certo, outras linhas interpretativas podem ter surgido. É possível que, para alguns, haja no resultado da instalação Sopros uma visualidade que remete a outras cenas urbanas: os emaranhados dos fios elétricos, os desarranjos amontoados de pessoas que vivem, moram e morrem “atrapalhando” as ruas da cidade... O caos, nem sempre lembra coisas “bonitas” e essa é uma leitura real que não deve ser descartada. Mais que isso, este tipo de referência nos faz lembrar que a legibilidade de uma obra não depende só da matéria em si. Ela é uma relação complexa na qual, entre os fatores de maior relevância, estão os repertórios compartilhados entre o autor e o público. E o que pensar quando a autoria se dilui em uma rede? E se o público se insere na coautoria? Como rastrear tais referências e intenções? Que fio de Ariadne pode servir ao observador?
São muitas as questões despertadas – e às vezes respondidas – pela documentação do processo. As fotografias feitas pela artista são registro de seu olhar acolhedor sobre cada gesto. Não é de admirar que amanhã ou depois estes focos se desdobrem em outras obras, pois, a rede construída a cada dia inspira e expira. O conjunto se dilata e se contrai num movimento vivo entre as árvores. E não há dúvida de que desperta inspirações.
Que importa a efemeridade dos laços e nós dados pelos passantes? Nem sempre o tempo que passa diminui a importância do instante, da atitude e da colaboração de cada um. Muitos se reencontravam nas imagens do ano passado afixadas nos arquivos. Em tempos de redes virtuais que dissimulam constância e permanência dos laços, quem é capaz de medir a resistência dos “nós” colocados em cada participação?

A arte de Nair e sua maneira de educar têm, de fato, objetivos em comum: desencadear processos individuais, trazer aos olhos as instâncias da autonomia. Um dos caminhos é propiciar a experiência. Outro, é despertar ruminações, perguntas e outras criações.
* Fotos: André Rosso, Germania e Rogério Nakagoa.

domingo, 18 de setembro de 2011

Mundos e referências

Leis da Integridade Criativa 
1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei. 
(Luiz Bras)


Segundo Pierre Bourdieu[1], “a cultura letrada, erudita, define-se pela referência; ela consiste no permanente jogo de referências que dizem respeito mutuamente umas às outras; ela não é nada mais do que esse universo de referências que são indissoluvelmente diferenças e reverências, distanciamentos e atenções.” Então, vale abrir espaço para a dúvida: o que me leva a escrever é esta eventual dinâmica em que estou imersa, ou, antes, fui seduzida pelas três bem humoradas leis de Luiz Bras[2]. Na verdade muitos elementos me motivaram a registrar o evento que foi, para mim, a leitura de seu livro.
Este autor, que assina também a coluna Ruído Branco, no jornal Rascunho, traz neste pequeno volume muitas vozes e olhares sobre a literatura contemporânea. Um discurso crítico renovado, elegante e inteligente. Algo que pelo menos me garantiu nesta pseudo-resenha o cumprimento da primeira de suas leis.

Mudar é mudar em todas as direções
Literatura, ficção, ética, ciência... São tantos os assuntos entrelaçados que até fica difícil eleger um ou dois tópicos para apresentar o livro. Talvez pelo rumo de minha própria prosa neste blog, os mais marcantes sejam os textos “Fim do papel, fim da poesia” e “o autor e o seu editor”. Porém, não somente nestes, reflexões sobre as novas mídias, mercado editorial e o perpétuo medo da mudança se desenrolam com imagens e citações extraordinárias:
“[...] Agora podemos ver a poesia na UTI, inconsciente, sobrevivendo artificialmente graças aos aparelhos hospitalares, e apenas graças a eles. O que seriam os aparelhos? Os prêmios oficiais, as edições patrocinadas pelas secretarias de cultura, as compras do governo para as escolas e bibliotecas públicas, e outras ações semelhantes. Todas artificiais, porque não pertencem ao horizonte de escolhas do grande público. [...]”
“[...] Naquela altura, o meu editor já estava preso havia quase três anos. Tinha sido apanhado em flagrante a recusar o livro de um jovem escritor, dizendo-lhe sabe como é, as pessoas já leem pouco, quanto mais um autor novo de quem nunca ouviram falar. [...] No princípio foi muito difícil. Os editores e os pedófilos são os mais maltratados nas prisões. Embora ele nunca me tenha dito, suponho que o tenham violado.”[3]
“[...] Quinhentos e tantos anos de imprensa caçaram, capturaram e aprisionaram o conhecimento do mundo em pequenas jaulas de papel e tinta.
As grandes livrarias, os grandes sebos, as grandes bibliotecas, são um tipo estranho e maravilhoso de zoológico.”
Sim. Gostei do livro por seu conteúdo, sua qualidade estética e até por seu formato de bolso, perfeito para espantar (ou acomodar) fantasmas existencialistas que também me rondam em filas de banco. Mas preciso confessar que senti falta da boa e velha listinha de referências bibliográficas ao final. Sei lá por quê... Vício? Condicionamento, talvez. Eram tantas ideias, obras e comentários que me deu um trabalhão ficar procurando tudo página a página, cada vez que me lembrava de um trecho. É um sintoma de que eu também tenho minhas raízes fincadas na Tradição. Será mesmo que todos a temos, como diz Bourdieu, como reverência ou como oposição? Bourdieu também fala que “o anacronismo está inscrito na atitude tradicional com respeito à cultura: o letrado tradicional vive sua cultura como viva e se percebe como contemporâneo de todos os seus predecessores.” Lembrei-me deste discurso ao constatar a “erudição descolada” de Luiz Bras. É apenas uma nota, um assunto engasgado, por enquanto, mas sobre o qual ainda pretendo escrever.

Cada cabeça é um mundo... e cada mundo, só uma cabeça?
O certo é que este livro me chegou como uma janela aberta a ventilar ideias e referenciais.  Foi bom ver um discurso coerente e bem estruturado, expondo os preconceitos em relação a alguns tipos de literatura. Foi enriquecedor me reconhecer cometendo vários erros... No livro há, por exemplo, uma argumentação consistente sobre os diferentes critérios de qualidade que norteiam a ficção científica, relegados pela crítica de um modo geral. Mais do que isso: há várias indicações de como o diálogo poderia ser mais produtivo, não fossem as fagulhas trocadas entre escritores e leitores de diferentes campos.  
De fato, ao ler Luiz Bras, vejo uma literatura que resgata (ou revigora) a leitura e a produção de livros como uma atitude política. “Quando você, eu, todos os leitores e todos os críticos dizemos ‘este livro é excelente’, na verdade estamos dizendo ‘este livro legitima o tipo de mundo no qual eu quero viver’. Então,  falar bem do livro em questão, promovê-lo, fazer com que seja lido por muita gente e passe a integrar o cânone literário, tudo isso se torna uma missão política. [...]”
Enfim, esta é mais uma leitura que por necessidade e por prazer vim aqui compartilhar.



[1] BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.144.
[2] BRAS, Luiz. Muitas peles. São Paulo: Terracota, 2011.
[3] Trecho do romance Uma casa na escuridão, do escritor português José Luís Peixoto, citado por Bras.

sábado, 23 de julho de 2011

Sociologia da Educação

“Uma das contradições da sociedade capitalista está na existência simultânea a  concentração do saber e das técnicas que permitiriam democratizá-lo, mas que não são usadas com essa finalidade.”  
(Sonia Kruppa)

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos. (...)” 
 (João Cabral de Melo Neto)




Para tecer o amanhã 

Em meio a tantas reflexões sobre a leitura e suas implicações sociais, sobretudo, no que se refere à cidadania, reconheço um aspecto que merece uma atenção especial: o professor como leitor – seja em sua atividade diária, seja em sua formação básica, ou na necessária e constante atualização de seus conhecimentos.
O livro Sociologia da Educação oferece uma introdução bastante responsável acerca da complexidade das relações ligadas à escola.  Como volume da série “Formação do professor”, editado pela Cortez em 1994, contém em sua estrutura capítulos temáticos que perpassam a relação entre política, economia, psicologia e, é claro, educação. Cada capítulo apresenta textos de base sobre a história e os desdobramentos deste ramo da sociologia e propostas de atividades, com uma reflexão a ser feita pelo professor em sua unidade escolar. Traz também a indicação comentada de leituras complementares ao final de cada capítulo.
Trata-se de um “curso”, breve, mas bem estruturado, ao qual – pelo que se percebe no cotidiano – nem todos os professores tiveram “acesso”. O que é “ter acesso”, quando se trata de um livro disponível em sebos e bibliotecas – é mais um ponto importante, a ser discutido com mais vagar em outra oportunidade.  Neste momento, proponho-me apenas a registrar algumas das ideias despertadas por esta leitura e seus elos com minhas impressões sobre o professorado de forma geral.

Ser professor e ser leitor
Ninguém discorda de que o conceito de leitura[1] – quando entendido como habilidade plenamente desenvolvida – ultrapassa os limites da decodificação escrita, consolidando-se como domínio de uma complexa rede relacional entre fatores textuais e extratextuais, em diferentes camadas de interpretação. Nos dizeres de Eni Orlandi[2], vale lembrar, “ler é saber que o sentido pode ser sempre outro”, e partindo desta consciência crítica inerente ao conceito, muitos outros campos sociais são acionados a cada exercício pleno de um leitor. A leitura se revela, portanto, como uma atividade criativa, geradora de novas reflexões, transformadora de comportamentos e ampliadora da visão de mundo.
Porém, os resultados expostos no livro Retratos da Leitura no Brasil[3] dialogam de maneira muito intensa com a matéria “A Educação vista pelo professor”, publicada na Revista Nova Escola, edição 207. Ao se perceber, por exemplo, que “muitos professores reconhecem que não se sentem suficientemente preparados para sua atuação profissional”, e ao mesmo tempo, “afirmam estar satisfeitos com a formação recebida na faculdade”, percebe-se algum “ruído” naquele conceito de leitura tomado aqui como pressuposto fundamental.  Percebe-se, por exemplo, que o desafio vai muito além de “ajudar os professores a se aperfeiçoarem com mediadores de leitura”, como bem afirma Maria Antonieta Cunha[4].
Há a necessidade dar “a todo professor” as condições necessárias para que ele também se desenvolva como leitor, pois se sabe que com a disseminação de cursos de licenciatura (de duração rápida, sem pesquisa e com conteúdo de baixíssima qualidade), infelizmente, o exercício das habilidades inerentes à leitura plena não tem sido sequer considerado como requisito para profissionalização.
Muita gente vai achar no mínimo “estranho” ouvir de um professor que ele “não gosta de ler” e que quando tem oportunidade disso, prefere “descansar”. Cada vez que nos deparamos com a precarização da profissão, até é possível reconhecer sua necessidade de “descanso”. Mas ao constatar que existem professores que não são capazes de compreender um texto simples, e que não têm a leitura como hábito para além do livro didático na sala de aula, há certamente motivos de sobra para a indignação.

Raízes ou frutos  quem pode cultivar ou eliminar o problema?
Outro paradoxo cotidiano, notado em uma série de eventos e relatos nos últimos dois anos, é que, muitas vezes, os discursos do senso comum enaltecem “a valorização da leitura e da escrita” como pressuposto, e ao mesmo tempo aceitam “o evidente descaso com a Educação no Brasil”, como fato instransponível ou mera fatalidade.
Mesmo sabendo que esse tipo de contradição entre as condições ideais e as condições concretas da sociedade se repete em muitas outras esferas – como saúde, segurança, moradia – cabe frisar o quanto este tipo de paradoxo agrava o quadro da educação. O discurso em si se torna um obstáculo na transmissão de conhecimento. Um empecilho que pode ser reconhecido de maneira mais ou menos planejada, dependendo dos fatores políticos, econômicos, psicológicos e sociais. A urgência não é por condenar um ou outro bode expiatório (como muitos têm feito, ao por a culpa no Programa de Progressão Continuada). Mesmo porque, se observarmos as condições sociais geradoras do programa (em seu projeto original), veremos que sua aplicação encontra pertinência na realidade paulista, porém, há muitos outros fatores, inclusive, econômicos e históricos, que são os verdadeiros desencadeadores do descaso social.
Apenas para apontar uma face dessa construção política do sistema, pode-se citar o teor dos textos que determinam o dever do Estado de garantir a Educação como um direito fundamental. No livro Sociologia da Educação[5], Sonia Kruppa comenta que a Constituição de 1937 já continha as sutis palavras:
“À infância e à juventude a que faltar recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e Municípios assegurar (...) a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais[6]. O ensino pré-vocacional profissional,  destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro  dever do Estado”
Conforme observa a autora: “a Constituição de 1937 separava a formação intelectual para as elites e o ensino vocacional, profissionalizante, para os desfavorecidos”. A distinção social de acesso à formação remete, nitidamente, à sociologia proposta por Durkheim[7], que separa quem sabe e quem faz, e continua vigente em nosso contexto neoliberal e globalizado. Porém, agora com novos elementos que exigem o reconhecimento do conceito de leitura como postura crítica na interpretação dos discursos – que por sua vez, jamais se limitaram aos livros.
Por esta perspectiva, analisar a complexidade do leitor em geral é uma tarefa árdua e extensa, sobretudo, em pleno século XXI, na chamada “Era do Conhecimento” – com mudanças cada vez mais aceleradas nos meios de comunicação e novas implicações que surgem a cada dia.
Por outro lado, muitos têm se perguntado até que ponto a escola, enquanto instituição mais diretamente responsável pela manutenção do status quo ou pela transformação social, consegue acompanhar tais mudanças – responder esta pergunta é outra tarefa de Hércules a ser enfrentada.
Segundo Kruppa, a chave está na “relação que a escola mantém com a realidade do aluno e com a comunidade na qual está inserida”. E para que se estabeleça esta relação de maneira autêntica e efetiva, é indispensável o fortalecimento do senso crítico e a ampliação da visão de mundo. Proporcionar o espaço para este fortalecimento é um desafio para toda a sociedade, pois tal ação envolve participação política, apoio social, manifestação das necessidades reais, mesmo que se entre em confronto com as convenções mais arraigadas – pois elas é que costumam ser as raízes do preconceito e da desigualdade econômica e social.  
Neste contexto de amplas indagações, analisar e alimentar de maneira responsável as instâncias da leitura na formação do professor faz parte de um reconhecimento deste, como agente e como um ponto de inflexão as ideias acima (valorização da leitura, o leitor em geral, desafios da escola e a reversão do descaso com a educação).
Em sua formação (contínua) o professor é – ou pelo menos deveria ser – um leitor pleno, apto a transmitir sua experiência e produzir conhecimento. No entanto, lamentavelmente, não é o que se percebe em grande parte dos “profissionais” em atividade. Muitos deles, aliás, mal alcançam a consciência de sua mera reprodução de discursos. E sem o apoio da população, dificilmente, encontrarão condições para alavancar uma nova qualidade – tanto de formação, quanto de ensino –a ser revertida ao ambiente social que os cercam.   
O quadro atual mostra uma realidade triste, mas como já vimos em tantas outras impressionantes transições históricas, trata-se de uma situação difícil, complexa (talvez mais “custosa” a uns que a outros...), mas não impossível de ser mudada.




[1] MARTINS, Maira Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1984.
[2] ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez;Unicamp, 1996.
[3] Retratos da leitura no Brasil, São Paulo: Instituto Pró-livro e Imprensa Oficial, 2010.
[4] CUNHA, Maria Antonieta Antunes. “Acesso à leitura na Brasil”, inRetratos da leitura no Brasil, São Paulo: Instituto Pró-livro e Imprensa Oficial, 2010, p.56.
[5] KRUPPA, Sonia Maria. Sociologia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994, p.56.
[6] Grifo de Kruppa.
[7] DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Trad. Fátima Oliva Do Couto. Introd. Weligton Paz. São Paulo: Hedra, 2010.


sábado, 5 de março de 2011

O leitor não escrito


(...) quando dizemos, como Michel de Certeau, que os leitores ‘reescrevem’ a seu modo os textos que lêem, estamos na realidade empregando uma metáfora. Esse processo de reescrita passa-se no cérebro do leitor e na maior parte das vezes,  não passa para as fontes escritas com as quais o historiador normalmente trabalha. Assim,  enquanto a escrita é a atividade produtora de sentido que os historiadores mais utilizam como fonte, a leitura, sendo também uma produção de sentido, deixa poucas marcas nas fontes.” (André Belo)






Os caminhos


Foi por meio do livro Cultura Letrada, que conheci a obra de André Belo, História & Livro e Leitura. Ainda que eu já tenha escrito um pouco a respeito do primeiro, agora, sinto que este espaço é pequeno para tantas e aceleradas reflexões.
Hoje, apenas para “registrar” meu contato escolhi uma de suas muitas passagens interessantes: o fato de que há em cada ato de leitura uma atividade produtora de sentido que não deixa marcas, mas desencadeia transformações.
Eu sei que, ao tocar nesse assunto, muitos educadores levantarão o tema da crise de alfabetização e da leitura – problema presente não só nas escolas, mas em todas as áreas da sociedade. Muitos estão reconhecidamente cansados dos esforços para resgatar o conceito de letramento que parece ter se perdido nas mudanças burocráticas e na defasagem salarial que os obriga a múltiplas jornadas. Além disso, a falta de formação e atualização entre os próprios professores também faz parte do quadro preocupante que se coloca, porém, não é este o foco que proponho hoje. 
As reflexões de André Belo, em boa parte pautadas sobre considerações de Certeau, comentam o caso de Menocchio, um moleiro que, na Itália do século XVI,  ao ser preso e interrogado pela Inquisição, revelou como origem de suas idéias “heréticas”, os livros que havia lido. Segundo o autor, “o exemplo de Mennochio veio mostrar como era possível a um aldeão o contato com os conteúdos de uma cultura livresca e, mais ainda, uma síntese intelectual original, produto de uma interpretação própria dos textos lidos.” Tudo isso “vivendo num meio cultural que, para o senso comum do historiador, seria sinônimo de oralidade e de falta de autonomia diante dos representantes da cultura letrada (o padre, a escola)”.
  As “confissões” manuscritas deste moleiro, com suas “descontextualizações” e “conclusões perturbadoras” me fizeram pensar em alguns aspectos do fenômeno da leitura em nosso tempo.  O primeiro deles – não sei se o mais óbvio de todos –  é o fato de a expansão editorial e o suporte tecnológico propiciar aos mennochios do século XXI um alcance muito maior e de muito mais difícil controle por parte das classes dominantes.  O contraponto elementar dessa mesma constatação é: até que medida eles realmente fazem uso do instrumental a que têm acesso garantido?

Os passos
O segundo item vem da emancipação adquirida por um homem comum aos olhos dos inquisidores. A perseguição não foi propriamente pelo fato de ele ter lido tais textos, mas por ter construído com eles uma autonomia que subentende coragem. Coragem para se permitir ideias próprias, torná-las públicas e discuti-las se necessário. Enquanto lia o livro, eu pensava  nos “pseudo-intelectuais” que eu já vi tantas vezes se limitando a repetir ipsis literis as falas e escritos de outros, sem sequer questionar as intenções ou pelo menos reconsiderá-las em um novo contexto.
Posso alegar algum conhecimento de causa, pois desde as primeiras aulas na faculdade, quando uma professora notável disse “não ousem me mostrar o que vocês escrevem”, a sombra da reprodução do discurso alheio também se abateu sobre mim.
Demorou até que eu conseguisse me resgatar no meio de tanta citação. Aliás, recentemente, meu elo com o texto alheio foi reconfortado nas palavras de Manguel: quando se trata apenas de “reconhecer meu pensamento nas palavras de outro” é uma experiência salutar, sem dúvida.
Não se trata, portanto, de um ataque à fortuna crítica indispensável a qualquer pesquisa acadêmica. Ao contrário, esta reflexão vem no sentido de destacar o quanto a leitura pode ser “desperdiçada” por leitores aparentemente fluentes, mas que não se permitem alimentar a produção de conhecimento acerca de um tema.
A insegurança é até compreensível, pois quando olhamos a bibliografia de qualquer grande autor, há a consciência de que “ele sabe muito”, e passa pela cabeça a velha ideia-escudo “quem sou eu para dizer alguma coisa?”
No entanto, a História mostra que cada passo exige o enfrentamento desta desestabilização rumo ao desconhecido. E isso pode significar, por exemplo, “desdizer” algumas verdades que sempre pareceram incontestáveis. Há ainda momentos em que é preciso dizer o óbvio que ninguém teve paciência de enunciar ou sistematizar. Exemplos não faltam: Aristóteles, Copérnico, Galileu, Freud... Enfim, a lista – tão infinita quanto as possíveis interpretações dos referidos textos – leva-nos ao terceiro ponto que chamou minha atenção.

O salto

Ao ler no livro de Belo este comentário sobre a “atividade produtora e não registrada” presente em qualquer leitura, divaguei por uma série de experiências, alumbramentos e decisões tomadas em cada etapa da formação de meu repertório pessoal. Quantas vezes tive vontade de acordar alguém no meio da madrugada apenas para comentar uma ideia recém-nascida! E tantas vezes, hoje, reconheço resquícios e desdobramentos de frases lidas ao acaso em alguma biblioteca, quando na verdade procurava outra coisa...  Reparei que esta característica essencialmente “criativa” da leitura pode ter sido a chave que me fez “meio mennochio” na comunidade onde cresci. Como aluna de escola pública, convivi com as deficiências e lacunas de meu currículo escolar. Vivenciei a inércia e a falta de perspectiva sem sequer saber da existência de universidades públicas. Foi preciso uma pausa de quase oito anos após o final do Ensino Médio para que eu compreendesse que havia mais de um caminho, e finalmente procurasse uma preparação para o vestibular.
Retomo minha trajetória pessoal questionando “qual terá sido o elemento disparador?” Pois como educadora, sei que a chave que distingue “dar acesso à leitura” e “formar leitores” está ligada, entre outras coisas, à elevação da auto-estima proporcionada pela criatividade. Reconhecer-se como alguém criativo não é tão fácil quanto parece. Muitas vezes o senso comum nos leva a limitar estas características às pessoas que lidam com as artes visuais, com a música, ou, no máximo, com a produção de textos escritos. Mesmo o reconhecimento dos “enunciados” na rica literatura oral, por vezes é complicado. No entanto, o texto de Belo me fez pensar em um “silêncio criativo” que a princípio me parece muito pouco explorado.
Ao olhar meus livros velhos e reconhecer meus sinais nas linhas discretamente sublinhadas, sempre me coloquei em contato com pessoas repletas de pensamentos e tomadas de um potencial criativo que pouca gente ao meu redor reconhecia. Demorei muito para perceber que essas pessoas não eram apenas os autores. Entre elas, fazendo ligações, tecendo hipóteses, tomando decisões a cada página virada, estava eu. Seria um passo e tanto se cada leitor conseguisse reconhecer as maravilhas de seu próprio crescimento a cada linha, a cada ideia, a cada salto criativo na comodidade de seu reino indecifrável.






ABREU, Márcia. Cultura Letrada: literatura e leitura.  Editora Unesp, 2006.
BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p.53.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Moacyr Scliar, mon frère


 “De todas as invenções nenhuma é mais sublime do que aquela que nos permite comunicar nossos mais íntimos pensamentos a outra pessoa, e não importa quão distante esteja em termos de tempo ou de lugar, e pela simples disposição, no papel, de duas dezenas de pequenos sinais. É o ápice da criatividade humana.” (Galileu Galilei)






Justamente em 27 de fevereiro, data de falecimento de Moacyr Scliar, eu estava relendo seu texto “O valor simbólico da leitura”, capítulo primeiro do livro Retratos da leitura no Brasil, organizado por Galeno Amorim. Por isso, de lá extraí esta citação de Galileu Galilei, e outras referências que me motivaram a escrever em sua homenagem.
No rádio, ouvi a declaração de Luís Fernando Veríssimo, acerca do engajamento do escritor, sempre envolvido com questões sociais relativas à saúde pública e ao desenvolvimento da leitura em nosso país.  Especialmente em sua reflexão sobre os dados da pesquisa do Instituto Pró-livro, o que se percebe é a ênfase na amplitude e valorização do conceito de “leitura” que não deve se restringir à decodificação do texto escrito, mas ao estabelecimento de relações com o mundo por meio do poder simbólico inserido em cada ideia, cada imagem e cada palavra.
Desta vez tive a impressão de que ao trazer a origem grega da palavra “símbolo” (syn = junto, bolon = arremessar), de alguma maneira, ele toca em uma das grandes feridas que dificultam a real apropriação da habilidade de leitura: o recente engodo conceitual embutido no senso comum de que há um significado “certo”, “seguro” e outros que provavelmente estão “errados”.  Tudo isso me fez lembrar uma velha lição aprendida na escola, na qual a professora dava a entender que o sentido denotativo de cada palavra era “mais pesado” que qualquer conotação singular. Lembro-me de num primeiro momento ter entendido que o sentido figurado das coisas aparecia “somente na poesia”. E Deus sabe como foi difícil abrir espaço mental para que os singelos exemplos dos exercícios fossem sistematicamente divididos entre denotativos e conotativos.
Lembrar dessas experiências aparentemente bobas é escavar a beleza de outras partes daquele mesmo texto de Scliar: “unidos por símbolos nós, humanos, nos arremessamos juntos nesta aventura que é a vida. Juntos, não separados; esse caráter de união que o símbolo proporciona é uma coisa importante e contrasta, como já veremos, com outras conotações que a escrita pode ter.”
Acompanhar seu breve discurso sobre as relações entre escrita, leitura e poder é tão prazeroso e enriquecedor quanto ler qualquer um de seus textos de ficção. Em particular, correlaciono esta reflexão à “Orelha de Van Gogh”, mencionada em um conto como memória de infância. Um elemento que de repente nos faz perceber o quanto crescemos a cada dia, sem volta. Aliás, vale destacar a eficiência do recurso às suas memórias pessoais, reconstruindo ao leitor seu contexto familiar – onde a mãe, por exemplo, dizia-lhe diante da livraria “na nossa casa não pode faltar livros, compra o quanto quiseres”.  
Seus relatos são conscientes de que “o acesso ao texto é para quem pode: quem pode frequentar colégio, quem pode comprar livros, quem tem tempo para ler (...)” – isso nos desanima ao acionar tantas pendências na área da Educação – mas tem o lado positivo de valorizar o que ele vivenciou: “o livro como porta de entrada de um mundo melhor”.  É com a proposta de apresentar a leitura como um “convite amável, não como uma tarefa ou obrigação” que ele conclui o texto enunciando o maior risco ao qual estamos de fato expostos “solapar o simbolismo da leitura”. 
Para terminar, relembro também uma de suas imagens literárias que me ajudaram a compreender a singularidade da resistência judaica, com toda sua carga histórica de diásporas, enfrentamentos e perseguições: a imagem do velho judeu, tocando a vida com tranquilidade, fazendo o que for necessário fazer, mas sempre com uma mala pronta, caso a necessidade de partir se coloque.  Hoje, pela manhã, mais uma vez me lembrei dele. Mas também me lembrei de sua referência a Baudelaire, que considerava o leitor “mon semblabe, mon frère” e a Edna St. Vincent Milay com o trecho “Read me, do not let me die”.  O próprio Scliar disse: “há vida, no texto, a vida que o autor, sobretudo o poeta ou o ficcionista, ali depositou.” Que haja sempre mais vida e que os novos olhos compreendam o que significa “estarem abertos” para vê-la.

Retratos da Leitura no Brasil/Org. Galeno Amorim – São Paulo: Imprensa Oficial: Instituto Pró-livro, 2008. 

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Nasce um Leitor




Há algum tempo comentei o quanto as palavras de Manguel me marcaram: “o livro não precisa do leitor para existir”. Sempre entendo o livro como um texto, de maneira geral, e acho que por isso, de um tempo para cá, quando me convidam a ser “leitora” me sinto ainda mais comovida. Será que alguém entende o que estou dizendo?
A atitude de reconhecer-se escritor ou leitor de alguém em especial, a meu ver, é um evento que merece mais atenção nessa era de semi-anonimato de milhões de blogueiros em todo o mundo.
Mesmo sabendo-me “supérflua” para a existência de qualquer texto, continuo adorando aquela impressão de que algo foi escrito especialmente para mim.  Imaginem, então, qual não foi minha alegria quando um jovem amigo me escolheu para leitora de seu texto “recém-nascido” – e como foi bom reencontrar tantas ideias que vivem por aí, na corrente de nossas afinidades e reflexões.
Felipe Caldas, como todo bom educador, é um leitor sensível. É também um dos amigos com quem vivo trocando dicas de cinema e insights sobre literatura.
Várias vezes o convidei a registrar seus pensamentos e impressões, mas confesso que a resistência do menino (ou pelo menos sua procrastinação) em alguns momentos abalou-me as esperanças... Por isso, mais do que nunca, fiquei feliz quando ele me procurou para compartilhar seu encontro com  Hilda Hilst. É bom perceber em suas palavras esse tom de “porta aberta”: sempre há espaço para saber mais. 

Descobrindo Hilda   (por Felipe Caldas)

Recentemente resolvi pesquisar um pouco sobre a chamada literatura erótica, por interesse pessoal e para um possível trabalho da faculdade. A primeira dificuldade (ainda não superada, como verão adiante) foi delimitar o erótico, o pornográfico e por que não o grotesco?         
Pois é, ainda não sei dizer. Além do mais, por enquanto isso não é de fundamental importância. O que interessa aqui é Hilda Hilst, pois uni a vontade de conhecer mais sobre a obra da escritora à necessidade em conhecer melhor os gêneros (?).
Depois de fazer aquelas breves pesquisas e rezas a “Nossa Senhora do Google” encontrei muitas informações que consideram a escritora, como autora de livros eróticos e pornográficos, ou ainda grotescos.
O que tenho a declarar é: “não sei se gostei, mas achei no mínimo intrigante”.
As minhas impressões nesse primeiro contato com algumas obras de Hilda, através dos livros Do Desejo, Bufólicas e Cartas a Um Sedutor (2008,Editora Globo), é possível transitar entre as três classificações.
Em Do Desejo, nos deparamos com poemas que expõem diferentes formas de se relacionar com o desejo, presente de forma ampla, desde as relações sexuais à companhia hilária e fiel de uma boa bebida, como no poema intitulado Alcoólicas, publicado originalmente em 1990 e reeditado em 2008, reunido a outros livros da autora.
Já em Bufólicas, nos deparamos com sete personagens tradicionais de contos de fadas que, satirizados, adquirem “anomalias sexuais”. Os textos destacam o tamanho, a aparência, entre outros aspectos dos órgãos e atos sexuais.
Cartas de um Sedutor é um livro que eu diria “múltiplo”. Nele está a narrativa de Stamatius e Eulália, um casal de mendigos que vivem em condições deploráveis, no entanto, fazem do desejo que sentem um pelo outro, quase que a principal fonte da relação e da continuação da vida à dois.
Stamatius é um escritor que renegou a classe média após ter sua produção literária recusada pelos meios editoriais – recusa esta que se justifica, do ponto de vista mercadológico, porque os livros eram desinteressantes e “escrachados demais”. A obsessão sexual que ele e Eulália sofrem, serve muitas vezes, de inspiração para muitas das narrativas criadas por Stamatius, entre elas, a troca de correspondências entre dois irmãos que, quando mais novos, mantinham uma relação incestuosa, ou ainda, os contos trágicos que o autor de Hilda cria a partir de falas de Eulália, sugerindo temas para o marido ou chamando-o para se deitarem (na obra, as definições vão muito além destas...).
É claro que os três livros citados representam e abordam muito mais do que abordei aqui, seja pela riqueza de termos utilizados para tratar as relações e órgãos sexuais ou pela rica estratégia de construir vozes poéticas e personagens cultos que referenciam escritores e pensadores da literatura mundial (Foucault, Sartre, Blake, Woolf, Kafka, Hemingway, entre outros), fazendo deste intelectualismo um atrativo sensual.    
 A sexualidade presente nos textos de Hilda Hilst, sem dúvida alguma, transmitem estranhas sensações, transitando, entre a excitação, o estranhamento e, sobretudo, a rejeição devido ao excesso e à crueza com a qual o tema é tratado.
Reafirmo o que escrevi no começo deste texto: “não sei se gostei!”, se gostei, ainda não descobri exatamente do quê, mas vale conferir. Por enquanto “(...) eu paro aqui. No oco das astúcias”.

 * Imagem: "Abraço", de Egon Schiele.