Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 23 de julho de 2011

Sociologia da Educação

“Uma das contradições da sociedade capitalista está na existência simultânea a  concentração do saber e das técnicas que permitiriam democratizá-lo, mas que não são usadas com essa finalidade.”  
(Sonia Kruppa)

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos. (...)” 
 (João Cabral de Melo Neto)




Para tecer o amanhã 

Em meio a tantas reflexões sobre a leitura e suas implicações sociais, sobretudo, no que se refere à cidadania, reconheço um aspecto que merece uma atenção especial: o professor como leitor – seja em sua atividade diária, seja em sua formação básica, ou na necessária e constante atualização de seus conhecimentos.
O livro Sociologia da Educação oferece uma introdução bastante responsável acerca da complexidade das relações ligadas à escola.  Como volume da série “Formação do professor”, editado pela Cortez em 1994, contém em sua estrutura capítulos temáticos que perpassam a relação entre política, economia, psicologia e, é claro, educação. Cada capítulo apresenta textos de base sobre a história e os desdobramentos deste ramo da sociologia e propostas de atividades, com uma reflexão a ser feita pelo professor em sua unidade escolar. Traz também a indicação comentada de leituras complementares ao final de cada capítulo.
Trata-se de um “curso”, breve, mas bem estruturado, ao qual – pelo que se percebe no cotidiano – nem todos os professores tiveram “acesso”. O que é “ter acesso”, quando se trata de um livro disponível em sebos e bibliotecas – é mais um ponto importante, a ser discutido com mais vagar em outra oportunidade.  Neste momento, proponho-me apenas a registrar algumas das ideias despertadas por esta leitura e seus elos com minhas impressões sobre o professorado de forma geral.

Ser professor e ser leitor
Ninguém discorda de que o conceito de leitura[1] – quando entendido como habilidade plenamente desenvolvida – ultrapassa os limites da decodificação escrita, consolidando-se como domínio de uma complexa rede relacional entre fatores textuais e extratextuais, em diferentes camadas de interpretação. Nos dizeres de Eni Orlandi[2], vale lembrar, “ler é saber que o sentido pode ser sempre outro”, e partindo desta consciência crítica inerente ao conceito, muitos outros campos sociais são acionados a cada exercício pleno de um leitor. A leitura se revela, portanto, como uma atividade criativa, geradora de novas reflexões, transformadora de comportamentos e ampliadora da visão de mundo.
Porém, os resultados expostos no livro Retratos da Leitura no Brasil[3] dialogam de maneira muito intensa com a matéria “A Educação vista pelo professor”, publicada na Revista Nova Escola, edição 207. Ao se perceber, por exemplo, que “muitos professores reconhecem que não se sentem suficientemente preparados para sua atuação profissional”, e ao mesmo tempo, “afirmam estar satisfeitos com a formação recebida na faculdade”, percebe-se algum “ruído” naquele conceito de leitura tomado aqui como pressuposto fundamental.  Percebe-se, por exemplo, que o desafio vai muito além de “ajudar os professores a se aperfeiçoarem com mediadores de leitura”, como bem afirma Maria Antonieta Cunha[4].
Há a necessidade dar “a todo professor” as condições necessárias para que ele também se desenvolva como leitor, pois se sabe que com a disseminação de cursos de licenciatura (de duração rápida, sem pesquisa e com conteúdo de baixíssima qualidade), infelizmente, o exercício das habilidades inerentes à leitura plena não tem sido sequer considerado como requisito para profissionalização.
Muita gente vai achar no mínimo “estranho” ouvir de um professor que ele “não gosta de ler” e que quando tem oportunidade disso, prefere “descansar”. Cada vez que nos deparamos com a precarização da profissão, até é possível reconhecer sua necessidade de “descanso”. Mas ao constatar que existem professores que não são capazes de compreender um texto simples, e que não têm a leitura como hábito para além do livro didático na sala de aula, há certamente motivos de sobra para a indignação.

Raízes ou frutos  quem pode cultivar ou eliminar o problema?
Outro paradoxo cotidiano, notado em uma série de eventos e relatos nos últimos dois anos, é que, muitas vezes, os discursos do senso comum enaltecem “a valorização da leitura e da escrita” como pressuposto, e ao mesmo tempo aceitam “o evidente descaso com a Educação no Brasil”, como fato instransponível ou mera fatalidade.
Mesmo sabendo que esse tipo de contradição entre as condições ideais e as condições concretas da sociedade se repete em muitas outras esferas – como saúde, segurança, moradia – cabe frisar o quanto este tipo de paradoxo agrava o quadro da educação. O discurso em si se torna um obstáculo na transmissão de conhecimento. Um empecilho que pode ser reconhecido de maneira mais ou menos planejada, dependendo dos fatores políticos, econômicos, psicológicos e sociais. A urgência não é por condenar um ou outro bode expiatório (como muitos têm feito, ao por a culpa no Programa de Progressão Continuada). Mesmo porque, se observarmos as condições sociais geradoras do programa (em seu projeto original), veremos que sua aplicação encontra pertinência na realidade paulista, porém, há muitos outros fatores, inclusive, econômicos e históricos, que são os verdadeiros desencadeadores do descaso social.
Apenas para apontar uma face dessa construção política do sistema, pode-se citar o teor dos textos que determinam o dever do Estado de garantir a Educação como um direito fundamental. No livro Sociologia da Educação[5], Sonia Kruppa comenta que a Constituição de 1937 já continha as sutis palavras:
“À infância e à juventude a que faltar recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e Municípios assegurar (...) a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais[6]. O ensino pré-vocacional profissional,  destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro  dever do Estado”
Conforme observa a autora: “a Constituição de 1937 separava a formação intelectual para as elites e o ensino vocacional, profissionalizante, para os desfavorecidos”. A distinção social de acesso à formação remete, nitidamente, à sociologia proposta por Durkheim[7], que separa quem sabe e quem faz, e continua vigente em nosso contexto neoliberal e globalizado. Porém, agora com novos elementos que exigem o reconhecimento do conceito de leitura como postura crítica na interpretação dos discursos – que por sua vez, jamais se limitaram aos livros.
Por esta perspectiva, analisar a complexidade do leitor em geral é uma tarefa árdua e extensa, sobretudo, em pleno século XXI, na chamada “Era do Conhecimento” – com mudanças cada vez mais aceleradas nos meios de comunicação e novas implicações que surgem a cada dia.
Por outro lado, muitos têm se perguntado até que ponto a escola, enquanto instituição mais diretamente responsável pela manutenção do status quo ou pela transformação social, consegue acompanhar tais mudanças – responder esta pergunta é outra tarefa de Hércules a ser enfrentada.
Segundo Kruppa, a chave está na “relação que a escola mantém com a realidade do aluno e com a comunidade na qual está inserida”. E para que se estabeleça esta relação de maneira autêntica e efetiva, é indispensável o fortalecimento do senso crítico e a ampliação da visão de mundo. Proporcionar o espaço para este fortalecimento é um desafio para toda a sociedade, pois tal ação envolve participação política, apoio social, manifestação das necessidades reais, mesmo que se entre em confronto com as convenções mais arraigadas – pois elas é que costumam ser as raízes do preconceito e da desigualdade econômica e social.  
Neste contexto de amplas indagações, analisar e alimentar de maneira responsável as instâncias da leitura na formação do professor faz parte de um reconhecimento deste, como agente e como um ponto de inflexão as ideias acima (valorização da leitura, o leitor em geral, desafios da escola e a reversão do descaso com a educação).
Em sua formação (contínua) o professor é – ou pelo menos deveria ser – um leitor pleno, apto a transmitir sua experiência e produzir conhecimento. No entanto, lamentavelmente, não é o que se percebe em grande parte dos “profissionais” em atividade. Muitos deles, aliás, mal alcançam a consciência de sua mera reprodução de discursos. E sem o apoio da população, dificilmente, encontrarão condições para alavancar uma nova qualidade – tanto de formação, quanto de ensino –a ser revertida ao ambiente social que os cercam.   
O quadro atual mostra uma realidade triste, mas como já vimos em tantas outras impressionantes transições históricas, trata-se de uma situação difícil, complexa (talvez mais “custosa” a uns que a outros...), mas não impossível de ser mudada.




[1] MARTINS, Maira Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1984.
[2] ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez;Unicamp, 1996.
[3] Retratos da leitura no Brasil, São Paulo: Instituto Pró-livro e Imprensa Oficial, 2010.
[4] CUNHA, Maria Antonieta Antunes. “Acesso à leitura na Brasil”, inRetratos da leitura no Brasil, São Paulo: Instituto Pró-livro e Imprensa Oficial, 2010, p.56.
[5] KRUPPA, Sonia Maria. Sociologia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994, p.56.
[6] Grifo de Kruppa.
[7] DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Trad. Fátima Oliva Do Couto. Introd. Weligton Paz. São Paulo: Hedra, 2010.