Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 31 de dezembro de 2011

Passarinho que se debruça...


“A escola resistiu a socializar a escrita, sendo que a leitura foi socializada. Ler significa ver o mundo pelos olhos do outro. Escrever significa expressar a própria identidade. Querer que todo mundo escreva e se comunique é que é ser revolucionário.”
(Elvira Souza Lima, antropóloga e neurocientista, em depoimento à revista Língua Portuguesa, de setembro, 2011).


Quando escolhi a metáfora roseana para abertura de um blog sobre livros, literatura e leitura, tal aforismo me trazia um sentimento promissor.  Ainda que no contexto original a imagem se refira a um personagem de intenções duvidosas, agora, deslocada para o novo lugar, eu a lia como um estímulo ao registrar as coisas que tantas vezes eu me inclinava a dizer, mas não dizia – por medo ou não sei bem o quê.
Um dia desses, quando li a notícia de que vários Estados norte-americanos aboliram o ensino de letra cursiva nas escolas, foi essa mesma sentença que me veio em mente. Puxa! Custei a entender o que tanto me incomodou na decisão... Não foi nem a visão simplista de um ou outro professor que cogitou a ideia para “facilitar o trabalho”. Percebi o elo entre ler e escrever em meu cotidiano. E somente hoje pude observá-lo com mais cuidado. Ele se manifesta no que não li e, na minha atual condição, em tudo o que tenho pensado, mas que apesar da vontade, não cheguei a escrever.
                                                          
O que li e o que não li
Tenho certeza de que alguém já disse isso: “a época da faculdade é o período em que mais se lê e menos se lê", pois tudo é picotado. Sempre fica a promessa de um dia ver o que o autor dizia em outros capítulos... e, ao que me parece, a medida que se avança nos estudos, essa angústia  também se amplia, se desdobra em pensamentos, listas, apontamentos e divagações.
Este ano decidi dar mais atenção este tipo de circunstância em que o ler o não ler se colocam como paralelos de modo mais evidente, e por este caminho me deparei com uma profunda necessidade de escrever. Iniciei um esboço de pesquisa sobre os discursos contraditórios que perpassam situação da leitura no Brasil e, no meu primeiro final de semana de férias, resolvi registrar algumas das minhas próprias contradições.
A primeira tem a ver com o volume de leituras orientadas pelo curso de Sócio-psicologia, que me jogam na certeza socrática do “só sei que nada sei”. Li tanto que agora tenho a (in)segurança saudável para afirmar que há muito ainda a ler, a refletir e a fazer...

Leitura - imposição ou escolha
Justamente ao atrelar o curso à pesquisa, percebi um fator não alcançado pela publicação nos Retratos da Leitura no Brasil: até mesmo o texto indicado como obrigatório em uma instituição de ensino é uma escolha. Todos os dias vejo pessoas que se contorcem em conduções lotadas para chegar à aula com o texto lido, enquanto outros deixam de lado, ou apelam para o “resumão”.  Parei uns alguns instantes pensando nisso e parte da minha angústia por tudo que não tive tempo de ler, já começou a se dissipar,  pois na maior parte das vezes tenho a sensação quase infantil de “ter feito a lição de casa”.
Aos poucos fui recordando também quantas leituras (não obrigatórias) enriqueceram minhas descobertas em 2011 e agora já me sinto mais confortável em refazer as velhas promessas de retomar textos no próximo ano.
Aliás, a quem duvida que um dia isso se cumpra, com satisfação devo dizer: é possível cumprir – claro que renunciando ao turbilhão das novidades... É preciso encaixar-se no tempo presente, com uma paciência que já não se vê por aí.
Neste ano que se fecha, finalmente, li alguns textos há muito adiados... Chego a achar que fiz as pazes com Freud, me aproximei de Bourdieu... Mas acho que minhas estrelinhas de boa aluna virão por ter relido Guimarães Rosa, Mia Couto e Alberto Manguel. Estou descobrindo Jorge Amado, revisitando Drummond, Clarice e Bandeira. Revejo meu mundo em letra impressa com o apoio essencial de Ezequiel Theodoro da Silva, fundamento de minhas reflexões.
Até aqueles livros adiados desde o colegial (e que não me perguntem os anos envolvidos nisso), finalmente começam a chegar com mais comprometimento, com mais paciência, e, se não “prazer”, pelo menos “aceitação”. Sim. Eu como qualquer outro leitor, tenho meus momentos de preguiça, cansaço, indisposição... E vi, no decorrer do ano, uma lista infinita de livros desejados, queridos, admirados, que nem por isso tive tempo ou condições de ler. Ficarão em paz numa pretensiosa lista de leituras. Não adianta nada exigir mais do que me é possível. Reconheço ser eu mesma um desses sujeitos desconcentrados do século XXI. Estou eu também imersa em demandas externas que me obrigam a adiar o que quero ler, pensar, fazer, dizer... e, principalmente, escrever.

Do tempo de ler ao tempo de refletir e escrever
Ao ouvir as inquietações da educadora Simone Scifone na Semana de Valorização do Patrimônio Histórico e Cultural da Cidade de São Paulo, percebi que, de fato, às vezes o deixar  de ler e o deixar de fazer são a única maneira de abrir espaço para a produção de conhecimento e a sistematização do que se pratica. Escrever é tão importante quanto ler. Em tempos de internet, mais do que nunca, cada um deve ter garantido o direito de manifestar sua presença no mundo, mas sem pressa, sem pressão, sem opressão.
Vejo que neste ano, entre tudo o que li e o que não li, estavam os meus pensamentos mais ricos: aqueles repletos de dúvidas. São eles que me arremessam a novas leituras, novas práticas e novos olhares. São eles que me fazem pensar que apesar de toda a correria, todas as falhas, o ano foi instrutivo, novo e bom.
Mas o que dizer da experiência de quebrar o braço direito, bem no dia em que comecei a escrever este texto? Algumas amigas me disseram que este “repouso forçado” era uma parada necessária que eu vinha adiando, um momento de descanso renegado até que a vida num breve escorregão deu um jeito de me cobrar.
Talvez elas tenham razão. Mas a queda também me fez ver minha própria fragilidade (o braço protegendo a cabeça...). E aqui estou eu no meu “repouso”: lendo com uma ampliada necessidade de escrever.

As letras e os dias...
Mais do que nunca pensei sobre o impacto da abolição da letra cursiva entre os norte-americanos. Porém, dessa vez, olhei para o fato sem meu vício intelectualóide de tentar entender ou explicar. Apenas me vi de volta àquela dificuldade esquecida: nestes 40 dias de braço engessado estou reaprendendo minha caligrafia, desta vez com a mão esquerda. É como se outra pessoa aparecesse em mim neste novo esforço de escrever como pensar. Pra quem não sabe, o manuscrito ainda tem um peso grande em meu dia a dia. Gosto de anotar tudo, revirar cadernos e papéis, rabiscar antes de ligar o computador. É somente um hábito, um capricho, ou outro vício impregnado ao meu raciocínio – um vício do qual não desejo me libertar. Algo que me faz falta neste exato momento em que me atrapalho toda ao pinçar com a esquerda as letrinhas soltas no teclado.
Como dizia, desde setembro a questão da letra cursiva também vinha fazendo parte das minhas leituras, mas o ponto exato de minha angústia ainda não estava claro. Veio agora em uma experiência de perda temporária desta habilidade. Há elementos afetivos, psicomotores e até criativos envolvidos em meu hábito. Mesmo que sejam contextos totalmente diversos, tenho a impressão de que este é um daqueles fatos que merecem uma discussão mais extensa do que a sociedade já adaptada aos argumentos de 140 caracteres está disposta a realizar.
Decerto, eu e muitos da minha geração – que por algum descuido não acompanharam o ritmo da dança tecnológica das cadeiras – tendemos a estranhar que uma habilidade (supostamente) tão arraigada à cultura ocidental possa ser extraída assim, sem dor. 
Depois de ter lido o texto “Mãos atadas”, de Juliana Holanda, na revista Língua Portuguesa, de setembro/2011, percebi que separar a socialização da leitura e da socialização escrita implica mais que um retrocesso, uma espécie de atropelamento de direitos. Por mais que eu reconheça as considerações colocadas por pedagogos, sei que há mais alguma coisa não contemplada. Tanto aqueles que destacam esta transformação como uma etapa da evolução, quanto àqueles que salientam o desenvolvimento cognitivo vinculado ao processo linear da escrita sabem que há mais valores em jogo do que o grande público se dispõe a perceber. 
Não tenho condições de entrar no aspecto pedagógico da discussão, mas confesso que já passei daquela primeira impressão de que “chegamos ao final dos tempos”. A decisão tomada no contexto americano não é um consenso. Porém, lá os processos de aprendizagem da língua oficial seguem caminhos diferentes das listas classificatórias pseudo-ensinadas no Brasil. Há que se pensar em um conjunto de fatores, inclusive, econômicos, antes que se saía por aí propondo uma decisão similar em nosso país. Um professor iniciante nos EUA ganha em média 35 mil dólares por ano– o que equivaleria a pouco mais de 5600 reais por mês. Portanto, o grau de seu envolvimento profissional, do ponto de vista da subsistência e do tempo, já é um diferencial a ser tomado em consideração.
Enfim, no Brasil, antes de um passo como este, ainda há muito que ler, construir e oferecer aos cidadãos. Não estamos prontos. Ainda nos faltam, por exemplo, condições para formar professores como leitores plenos, com o domínio desta tecnologia milenar que é a escrita. Poucos se permitem usá-la de fato, na tentativa de alçar voo, ver o mundo de maneira mais ampla, a fim de vasculhar novos caminhos.