Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 5 de março de 2011

O leitor não escrito


(...) quando dizemos, como Michel de Certeau, que os leitores ‘reescrevem’ a seu modo os textos que lêem, estamos na realidade empregando uma metáfora. Esse processo de reescrita passa-se no cérebro do leitor e na maior parte das vezes,  não passa para as fontes escritas com as quais o historiador normalmente trabalha. Assim,  enquanto a escrita é a atividade produtora de sentido que os historiadores mais utilizam como fonte, a leitura, sendo também uma produção de sentido, deixa poucas marcas nas fontes.” (André Belo)






Os caminhos


Foi por meio do livro Cultura Letrada, que conheci a obra de André Belo, História & Livro e Leitura. Ainda que eu já tenha escrito um pouco a respeito do primeiro, agora, sinto que este espaço é pequeno para tantas e aceleradas reflexões.
Hoje, apenas para “registrar” meu contato escolhi uma de suas muitas passagens interessantes: o fato de que há em cada ato de leitura uma atividade produtora de sentido que não deixa marcas, mas desencadeia transformações.
Eu sei que, ao tocar nesse assunto, muitos educadores levantarão o tema da crise de alfabetização e da leitura – problema presente não só nas escolas, mas em todas as áreas da sociedade. Muitos estão reconhecidamente cansados dos esforços para resgatar o conceito de letramento que parece ter se perdido nas mudanças burocráticas e na defasagem salarial que os obriga a múltiplas jornadas. Além disso, a falta de formação e atualização entre os próprios professores também faz parte do quadro preocupante que se coloca, porém, não é este o foco que proponho hoje. 
As reflexões de André Belo, em boa parte pautadas sobre considerações de Certeau, comentam o caso de Menocchio, um moleiro que, na Itália do século XVI,  ao ser preso e interrogado pela Inquisição, revelou como origem de suas idéias “heréticas”, os livros que havia lido. Segundo o autor, “o exemplo de Mennochio veio mostrar como era possível a um aldeão o contato com os conteúdos de uma cultura livresca e, mais ainda, uma síntese intelectual original, produto de uma interpretação própria dos textos lidos.” Tudo isso “vivendo num meio cultural que, para o senso comum do historiador, seria sinônimo de oralidade e de falta de autonomia diante dos representantes da cultura letrada (o padre, a escola)”.
  As “confissões” manuscritas deste moleiro, com suas “descontextualizações” e “conclusões perturbadoras” me fizeram pensar em alguns aspectos do fenômeno da leitura em nosso tempo.  O primeiro deles – não sei se o mais óbvio de todos –  é o fato de a expansão editorial e o suporte tecnológico propiciar aos mennochios do século XXI um alcance muito maior e de muito mais difícil controle por parte das classes dominantes.  O contraponto elementar dessa mesma constatação é: até que medida eles realmente fazem uso do instrumental a que têm acesso garantido?

Os passos
O segundo item vem da emancipação adquirida por um homem comum aos olhos dos inquisidores. A perseguição não foi propriamente pelo fato de ele ter lido tais textos, mas por ter construído com eles uma autonomia que subentende coragem. Coragem para se permitir ideias próprias, torná-las públicas e discuti-las se necessário. Enquanto lia o livro, eu pensava  nos “pseudo-intelectuais” que eu já vi tantas vezes se limitando a repetir ipsis literis as falas e escritos de outros, sem sequer questionar as intenções ou pelo menos reconsiderá-las em um novo contexto.
Posso alegar algum conhecimento de causa, pois desde as primeiras aulas na faculdade, quando uma professora notável disse “não ousem me mostrar o que vocês escrevem”, a sombra da reprodução do discurso alheio também se abateu sobre mim.
Demorou até que eu conseguisse me resgatar no meio de tanta citação. Aliás, recentemente, meu elo com o texto alheio foi reconfortado nas palavras de Manguel: quando se trata apenas de “reconhecer meu pensamento nas palavras de outro” é uma experiência salutar, sem dúvida.
Não se trata, portanto, de um ataque à fortuna crítica indispensável a qualquer pesquisa acadêmica. Ao contrário, esta reflexão vem no sentido de destacar o quanto a leitura pode ser “desperdiçada” por leitores aparentemente fluentes, mas que não se permitem alimentar a produção de conhecimento acerca de um tema.
A insegurança é até compreensível, pois quando olhamos a bibliografia de qualquer grande autor, há a consciência de que “ele sabe muito”, e passa pela cabeça a velha ideia-escudo “quem sou eu para dizer alguma coisa?”
No entanto, a História mostra que cada passo exige o enfrentamento desta desestabilização rumo ao desconhecido. E isso pode significar, por exemplo, “desdizer” algumas verdades que sempre pareceram incontestáveis. Há ainda momentos em que é preciso dizer o óbvio que ninguém teve paciência de enunciar ou sistematizar. Exemplos não faltam: Aristóteles, Copérnico, Galileu, Freud... Enfim, a lista – tão infinita quanto as possíveis interpretações dos referidos textos – leva-nos ao terceiro ponto que chamou minha atenção.

O salto

Ao ler no livro de Belo este comentário sobre a “atividade produtora e não registrada” presente em qualquer leitura, divaguei por uma série de experiências, alumbramentos e decisões tomadas em cada etapa da formação de meu repertório pessoal. Quantas vezes tive vontade de acordar alguém no meio da madrugada apenas para comentar uma ideia recém-nascida! E tantas vezes, hoje, reconheço resquícios e desdobramentos de frases lidas ao acaso em alguma biblioteca, quando na verdade procurava outra coisa...  Reparei que esta característica essencialmente “criativa” da leitura pode ter sido a chave que me fez “meio mennochio” na comunidade onde cresci. Como aluna de escola pública, convivi com as deficiências e lacunas de meu currículo escolar. Vivenciei a inércia e a falta de perspectiva sem sequer saber da existência de universidades públicas. Foi preciso uma pausa de quase oito anos após o final do Ensino Médio para que eu compreendesse que havia mais de um caminho, e finalmente procurasse uma preparação para o vestibular.
Retomo minha trajetória pessoal questionando “qual terá sido o elemento disparador?” Pois como educadora, sei que a chave que distingue “dar acesso à leitura” e “formar leitores” está ligada, entre outras coisas, à elevação da auto-estima proporcionada pela criatividade. Reconhecer-se como alguém criativo não é tão fácil quanto parece. Muitas vezes o senso comum nos leva a limitar estas características às pessoas que lidam com as artes visuais, com a música, ou, no máximo, com a produção de textos escritos. Mesmo o reconhecimento dos “enunciados” na rica literatura oral, por vezes é complicado. No entanto, o texto de Belo me fez pensar em um “silêncio criativo” que a princípio me parece muito pouco explorado.
Ao olhar meus livros velhos e reconhecer meus sinais nas linhas discretamente sublinhadas, sempre me coloquei em contato com pessoas repletas de pensamentos e tomadas de um potencial criativo que pouca gente ao meu redor reconhecia. Demorei muito para perceber que essas pessoas não eram apenas os autores. Entre elas, fazendo ligações, tecendo hipóteses, tomando decisões a cada página virada, estava eu. Seria um passo e tanto se cada leitor conseguisse reconhecer as maravilhas de seu próprio crescimento a cada linha, a cada ideia, a cada salto criativo na comodidade de seu reino indecifrável.






ABREU, Márcia. Cultura Letrada: literatura e leitura.  Editora Unesp, 2006.
BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p.53.