Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Autorretratos para leitores e não-leitores



Pesquisa mostra que metade da população brasileira não lê e apenas 2% dos professores dedicam seu tempo livre à leitura. Mesmo assim, há esperanças.








De acordo com os dados mais recentes da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cujo terceiro volume foi lançado em agosto, apenas 7% dos leitores levam em conta críticas e resenhas como fatores que mais influenciam na leitura de um livro. Eu poderia desistir de escrever este texto diante desse dado. Mas como as estatísticas têm suas sutilezas, prefiro me apegar aos 29% que levam em conta “dicas de outras pessoas”. Mesmo diante de números preocupantes e dignos de manchetes na imprensa, como a constatação de que apenas metade da população se declara leitora, como se sabe, quem lê as letras miúdas acaba enxergando outros aspectos que não costumam estar tão explícitos nas bancas de jornal. Por analogia, quem ler Retratos da Leitura no Brasil 3 verá que os números são apenas a ponta do iceberg.
Desta vez, o período de aplicação foi entre os meses de junho e julho de 2011 com o total de 5.012 entrevistados. Segundo a organizadora deste volume, Zoara Failla   socióloga da Unesp, gerente de projetos do Instituto Pró-livro e coordenadora técnica da pesquisa  de 2008 —, houve algumas inovações nos procedimentos com a intenção de obter respostas mais fidedignas. Por exemplo, desta vez optou-se por perguntar primeiro “quantos livros a pessoa leu nos últimos três meses” e somente depois “qual a importância da leitura” (questão que de alguma forma já induzia, ou pelo menos, “pressionava” o entrevistado na edição passada). Na edição atual, buscou-se também uma validação por meio de perguntas sobre o último livro lido, como: título, autor e se estaria no domicílio. A diagramação e estrutura geral da pesquisa publicada permitem a comparação com os números internacionais e com os dados de 2008.
Se há espaço para sugerir um acréscimo ou outra pesquisa, creio que talvez fosse interessante saber quantas pessoas “leem” esse documento no Brasil. Mais interessante ainda seria identificar o perfil do leitor da pesquisa, e, na medida do possível, como essa leitura se desdobra em suas ações na sociedade. A sugestão não é um capricho pessoal, mas consequência de algumas reflexões despertadas tanto nesta leitura quanto na do volume anterior. Que o quadro da educação é preocupante, que o letramento tem sido um desafio em todas as etapas da vida escolar, que grande parte da população entende a biblioteca como um espaço diretamente ligado à escola, são dados cujos números já podiam ser “intuídos” em qualquer conversa cotidiana. Afinal, quem não percebe que a imagem dos pais como motivadores perdeu espaço para o professor? Isso reflete, entre outras coisas, uma família mais dividida, com pouco tempo para o convívio afetivo (o que também tem consequências na construção dos laços sociais). 
Já o grande número de professores que não são leitores – ou, quando são,  denotam um repertório bastante limitado – também aterroriza, mas não necessariamente surpreende. Entre 145 professores entrevistados, apesar de 94 dizerem que “gostam muito de ler” e 38 dizerem que gostam “um pouco”, 73 não conseguiram citar nenhum autor. Entre os que citaram, ficou evidente a preferência por livros de “autoajuda”.  Outro número impressionante é que, dentro desse universo de 145 professores, apenas três declararam preferir dedicar seu tempo livre à leitura.
Antes que vozes se elevem maldizendo os “professores inaptos” como mediadores, cabe lembrar que muitos deles são aqueles mesmos alunos do passado, a quem foi atribuída a responsabilidade sobre o “futuro da nação”. Muitas vozes ainda hoje persistem nesse péssimo costume de atribuir a responsabilidade sempre ao outro e no futuro – sem qualquer compromisso de garantir o que as necessidades básicas para a formação intelectual e desenvolvimento humano se consolidem no presente. É importante destacar essa dívida histórica, e certamente a proposta de recolocá-la no centro do debate é uma das melhores inovações da edição.
Marcos Antonio Monteiro, Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, introduz os comentários usando as palavras de Antonio Candido como epígrafe. O texto citado é O Direito à Literatura, palestra do curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, publicado pela primeira vez em 1989.  Mais de vinte anos depois, o trecho continua a sintetizar com força e clareza a emaranhada raiz do problema: “Em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura [...] Pelo que sabemos, quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura, e portanto difusão crescente das obras.”
Claro que é importante saber quem são esses leitores e não-leitores. Identificar quais são os fatores sociais, econômicos e culturais que levam 75% dos entrevistados a não frequentar bibliotecas (e 33% alegarem que “nada os faria frequentar uma biblioteca”). Porém, as inquietações despertadas pelos dados e pelos comentários de especialistas, como Ana Maria Machado, Ezequiel Theodoro da Silva, Regina Zilberman, Marisa Lajolo, José Castilho Marques Neto e tantos outros, ultrapassam limites que muitas vezes vinham erroneamente restringindo a discussão. Nas escolas, nas ruas, nos corredores, é muito comum ouvir dizer que a responsabilidade sobre a formação de leitores cabe à escola e, especialmente, ao professor de língua portuguesa. Ao trazer a pauta da leitura como “prática social” inerente ao exercício da cidadania, a publicação convoca “todos” a sair dos estereótipos e encarar os números da leitura de maneira menos idealizada. Há avanços e retrocessos. Paradigmas em transição que exigem novas estratégias. Tendências e transformações tecnológicas irreversíveis que exigem o empenho de toda a sociedade. Isso vai desde os gestos mais afetivos, como ler para os filhos, aos mais complexos do ponto de vista da implementação de políticas públicas que enfrentem o abismo da desigualdade social.
Como educadora, faço questão de recomendar o livro para pessoas de todas as áreas. Não se trata de concordar ou discordar dos dados, mas de reconhecer os embates e até as contradições. Se queremos de fato resolver o que alguns chamam de “crise da leitura”, o desafio é grande e urgente. Não pode ser adiado. Há que se convergir o envolvimento real de gregos e troianos, sem resmungos conformistas ou devaneios nostálgicos. Nesse sentido, como citação complementar à altura das palavras de Candido, recordo as de Maria Victória de Mesquita Benevides, em outro texto da Comissão de Justiça e Paz: ela diz que aprendeu com um amigo, ex-preso político e hoje um batalhador da cidadania ativa no Brasil e no mundo, que “se sopra um ventinho, temos que sair com a nossa pipa”. Então, se os dados dizem que temos 50% de não-leitores, é preciso despertar a ação efetiva entre os 50% leitores para reverter o quadro.


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Ao velho Ray


Não havia tempo. Na verdade tudo começou exatamente quando o tempo havia acabado. Quem nunca adiou a vida até percebê-la por meio de uma morte, que atire a primeira pedra.
Os livros estavam por perto – apenas inacessíveis na bagunça da casa: caixas de sapatos, caixas de envelopes, caixas de textos fragmentados e fotocopiados na época da faculdade. Havia também inúmeras caixas e gavetas precavidamente cheias. Papéis avulsos, recortes, clipes, fitas, fios, quinquilharias a ocupar o espaço como estratégia sutil de autossabotagem: enquanto não houvesse lugar para guardar, enquanto não arrumasse tudo, não poderia escrever. Por isso também o computador vem sendo mantido no mais caótico abismo em subpastas... Se alguém ousasse procurar um velho esboço, um poema, um conto aparentemente inacabável, com certeza desistiria na metade do caminho. A impressora, mantida a distância de tudo, fazia parte desse complexo ambiente construído para sustentar seu mito mais intimista: não ter para não perder.
E aí, o que acontece? Um homem – há anos luz de distância – escreve um livro. Um título não notado em centenas de visitas a bibliotecas e livrarias, até que em um insignificante momento, chega às mãos da leitora. Não passava de uma edição barata, mas o subtítulo interno era convidativo: Fahrenheit 451 – a temperatura na qual o livro pega fogo e queima. Um livreto tão leve que foi comprado quase sem se fazer perceber. Cabia na bolsa... e foi em comodismo despretensioso que as primeiras palavras da epígrafe foram lidas: se te derem papel pautado, escreve de trás para frente. Ela não fez questão de saber quem era Juan Ramón Jiménez. Talvez nem tenha percebido que acabara de ultrapassar a fronteira. Entrava no campo de verdades minadas de Ray Bradbury, como quem apenas abre a janela para entrar ar – e se vê exposta ao mundo, sem proteção.
Isso tudo aconteceu em maio. Foram dois ou dez dias para ler o livro? Não sei. Aliás, desde a primeira parte já não conseguia distinguir entre ler e reler. Com o final de semestre chegando, nem tentou evitar que o livro adentrasse aos seus estudos, ensaios e comentários. No mesmo dia da decisão de conhecer mais aquele autor, o choque: o jornal dizendo “morre Ray Bradbury”, já era junho! E veio o sentimento de o ter deixado a vida inteira sozinho, sem com ele compartilhar seus mais tolos sonhos.
O caminho do outro livro – O zen e a arte da escrita – foi mais fácil e ao mesmo tempo ainda mais doloroso. Esse, sim, lhe havia sido oferecido alguns meses antes... Mas não havia tempo! Gavetas cheias, estantes desarrumadas, as caixas... As eternas caixas que mantinham a casa em constante clima de mudança. Ao ver o rosto bonachão do velho Ray no jornal, não sorriu. Quase pediu desculpas. Pediria se pudesse. Seu silêncio foi uma promessa de leitura, mas não esperava que o homem – já morto – fosse capaz de responder!
Não. Não anotei o dia. Ao ler o título do prefácio, já me apedrejava – lê-lo é sentir o espírito se agarrando aos ossos – a voz dele, mesmo traduzida em minha própria língua exigia algo mais difícil que esvaziar as gavetas, mais difícil do que organizar a casa, mais difícil do que ler pilhas e pilhas de artigos para a pesquisa acadêmica. Toda noite, o velho Ray, ao lado da cama dizia que a escolha era inadiável: escrever ou morrer. Pior: mesmo morrendo a cada noite, logo cedo ele continuava lá. Escrever ou escrever. Mais uma vez, eu – a leitora – perdia tempo pensando e ele puxava minha orelha. Lamentava episódios, arranhava angústias, ele parecia uma gravação contínua: escrever sem pensar – apenas escrever!
A cada página algo doía: o fascínio pelas pessoas idosas, o medo do que os outros pensam, a consciência da inutilidade... Até que ele, do alto de sua sabedoria impressa e editada em tantas línguas, me disse algo remoído muito antes de eu nascer: decidi, muito tarde num dia, que nunca desistiria do meu primeiro sonho. Que raiva! Qual era o meu primeiro sonho? Ser escritora?!
Quando vi, já estava no escuro porão. Quando eu era criança – na verdade até a adolescência – escrevi cartas ingênuas ao meu irmão morto, que nem sequer conheci. Eu me dirigia a ele como a um anjo da guarda. Muitas vezes pedi que ele me buscasse  e me tirasse daquela casa, que me ajudasse com essa tarefa difícil que é tornar-se nada. E somente agora percebo que, quando meu irmão morreu, ele não virou “nada” – ele se tornou uma ideia, um norte, um apoio que me fez começar a escrever. Que dizer dos outros irmãos, jamais conhecidos em vida: Van Gogh, Oscar Wilde, Drummond, Mário de Andrade, Quintana, Clarice, Virgínia, Anne Frank...!? A lista de meus companheiros é infinita. A partir dela construí a noção de transcendência (ou o mais próximo que alcancei de uma crença ou religiosidade). Nos momentos mais sombrios eu acreditava na morte como uma espécie de portal para uma convenção literária. A eternidade era o único tempo possível para encontrar todos, finalmente, conversar, ouvir suas respostas depois de minhas perguntas serem feitas (sim, porque muitas vezes me chateio quando nos livros as respostas vêm adiantadas e mal tenho tempo de tecer a pergunta).
Então. Onde eu estava? Ah... claro. Não estava. A vida foi sempre adiar – escrever aos mortos, talvez por covardia, escrever para não correr o risco de alguém me responder. Mas ele, de repente, anos antes de eu nascer, respondeu.
Disse o que fazer: se quero ser escritora – preciso escrever. Se o objetivo fosse viver de escrever, tudo seria infinitamente mais complicado. Mas não me permito sequer esse sonho. Quero apenas escrever.
Ok, ok... não sei se estou fazendo certo. Apenas vomitei essas palavras e agora espero que ele me deixe dormir. Olho a data e penso em outros fantasmas mais familiares. Hoje seria o aniversário da minha bisavó Lídia – vó Lídia. Sei tão pouco dela. Lembro-me do seu sorriso. Lembro-me da grandeza do seu silêncio quando saímos de madrugada para uma viagem e vimos juntas a lua cheia, marcada por um aro colorido. Ela sorriu em silêncio, assentindo com a cabeça (nunca se sabe qual cena vai ficar para sempre na sua memória). Além desse dia, sei apenas das estampas coloridas de flores pequenas em seus conjuntos de saia e camisa, da trança no cabelo branco e do milagre adocicado do jiló frito que somente ela sabia fazer. Algo me diz que minha avó não lia, mas guardo alguma fé de que ela estará presente naquela eterna convenção. 

São Paulo, 03 de setembro de 2012.
R.B.