Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Memória Vegetal


“Os livros nos deleitam quando a prosperidade nos sorri, confortam-nos durante as borrascas da vida. Robustecem os propósitos humanos, sustentam todo severo juízo. As artes e as ciências, cujas virtudes dificilmente se pode conceber, baseiam-se nos livros. Quão alto podemos estimar o admirável poder dos livros, pois que através deles podemos considerar os extremos limites do mundo e do tempo, as coisas que são e as que não são, quase fixando o olhar no espelho da eternidade.(...)” (Richard de Bury)





"Os livros são feitos para serem lidos"

Estas palavras, com as quais Richard de Bury testemunha a bibliofilia em 1344, são o início de uma das citações apresentadas por Umberto Eco em seu livro A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia (Editora Record, 2010). 

O livro reúne conferências e artigos do semiólogo, professor e escritor, com conteúdos que despertam reflexões sobre a nossa relação com o livro e com a leitura em diferentes tempos, suportes e situações. Mas bastariam essas primeiras palavras para explicar as motivações de um bibliófilo? 

Para alguns, sim. Porém, Umberto Eco destaca a necessidade de distinguir a bibliofilia da bibliomania e outras sutilezas do colecionismo. Há, neste conjunto de escritos, um conceito de humanidade – de ser humano como, antes de tudo, “um fato de memória” – conforme Valéry, também citado por Eco. Nossa relação com o tempo e com o esquecimento faz parte da história deste objeto que para muitos “é um meio de superar a morte”, mantendo no mundo presenças, ideias e individualidades. 

Com um passeio pela História, Eco discute a participação do livro na aquisição de uma memória coletiva, com referenciais e conhecimentos transmitidos que nos transformam diariamente. O suporte desta memória também teve sua estrutura transformada em diferentes contextos – tivemos uma memória mineral, em distintas escrituras em pedra e argila; orgânica, registrada em couro de animais; mas, mesmo em nossa contemporaneidade permeada pelo silício que garante o suporte digital, é no papel que estão registradas, ainda hoje, grande parte das informações. 

Um tópico levantado de maneira breve, mas pertinente, é a posição de Platão acerca da escrita como geradora de enfraquecimento da memória. A reflexão nos conduz ao fato de que a abundância de informação muitas vezes gera ignorância, em vez de conhecimento. Porém, por isso mesmo, vê-se que em nosso apego à concretude do texto há ainda uma série de questões e mazelas entrelaçadas. Para começar, considera a situação dos analfabetos dentro deste contexto social, pois os livros são hoje, mais do que nunca, uma potencialização da memória que insere e exclui historicamente dados e indivíduos. Claro que o assunto entra em detalhes óbvios, mas nem sempre percebidos na pressa cotidiana da informação – por exemplo, será tão evidente a todos o fato de que ler “nos ajuda a não acreditar nos livros”? Então, como educar-se para escolher, para distinguir o que merece e o que não merece crédito? 

Aliás, o livro traz também uma série de considerações sobre os critérios adotados por colecionadores e bibliófilos, e chega a expor algumas “esquisitices” intrínsecas a cada perfil de coleciondador, como o caso dos bibliômanos que chegam a roubar livros e muitas vezes mantê-los com as páginas intocadas apenas pelo prazer de possuí-los secretamente. Para Umberto Eco, o bibliomâno que jamais lê sequer uma página de seus livros não é diferente do bibliófobo ou biblioclasta, que os condena ao esquecimento ou os destrói. Enquanto isso, os bibliófilos são aqueles que os folheiam, que os estudam, sem jamais cogitar a “completude” da coleção. Amam e cuidam dos livros, mas nem por isso escapam da angústia de não saber a quem mostrar seus tesouros. O leitor percebe o quanto Eco escreve mais uma vez com o gosto da própria experiência. Ao discorrer sobre a forma, a qualidade, a vida útil e as peculiaridades de cada exemplar, acumula argumentos para que cada livro seja “amado” por muito mais que seu conteúdo. Ousa até a conclusão de que a formação de uma boa biblioteca denota um desejo pessoal que ultrapassa limites de propriedade. Trata-se de um ambiente vivo, autônomo, e em sua diversidade de livros é até mesmo “um lugar que os lê por nós”. 

As obras e autores brevemente comentados no texto incluem alguns “loucos literários” – com suas edições sobre “a possibilidade de abolição da morte” e tratados sobre “a estatura de Adão”, por exemplo. 

Há também uma explanação sobre os critérios remotos para que um texto merecesse ou não ser publicado, e neste aspecto, destaca, inclusive com alguma curiosidade, a situação daqueles a quem ele chama de autores e filósofos “de quarta dimensão” – que são mais precisamente, “os autofinanciados”. A classificação pode ser resumida em: primeira dimensão, os autores com trabalhos encontrados em manuscritos; de segunda, os inúmeros publicados, muitas vezes, condenados ao anonimato; de terceira, são os que fizeram algum sucesso e são reconhecidos ainda hoje. 

Os de quarta dimensão, para Eco, estão também entre aqueles que raramente alcançam um reconhecimento, e acabam se perdendo na multidão. Porém, ao comentar casos emblemáticos do passado, o autor nos aponta reflexões bastante contemporâneas, pois afinal, o que serão dos milhões de impressos produzidos em nosso tempo? O que ficará como referência para as próximas gerações? 

Além de tudo, vale lembrar, a linguagem de Eco é um prazer à parte. Ao expor seu nada secreto amor pelo livro, ele aciona no leitor as mais diversas metáforas que aprofundam conceitos e significados. Como exemplo, pode-se citar passagens como aquela em que, ao discutir a relação do leitor com o objeto livro, mostra que ler é ir muito além do conteúdo, afinal: “jogar fora um livro depois de lê-lo é como não desejar rever a pessoa com a qual acabamos de ter uma relação sexual”. Outra passagem inusitada é seu comentário acerca dos “belos rendados” produzidos por brocas que ameaçam o texto. 

Enfim, em A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia, mais uma vez Eco reafirma que não tem medo de a onda tecnológica empurrar o livro para o aparentemente ilimitado mundo virtual. Em todo caso, ele não deixa de apoiar e vivenciar a bibliofilia, reconhecendo nela “um ato piedade e solicitude ecológica” – diz – “porque não devemos salvar apenas as baleias, o urso do Abruzzo, mas também os livros.” Salvá-los do descuido, do descaso, dos lugares inóspitos e também das mãos que os condenam aos lugares inalcançáveis, longe dos leitores. 



*Livro: ECO, Umberto. A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia. São Paulo: Record, 2010.
**Publicado no Jornal da ABI, edição 359.


sábado, 11 de dezembro de 2010

Cultura Letrada - literatura e leitura



“Ler um livro é cotejá-lo com nossas convicções sobre tendências literárias, sobre paradigmas estéticos e sobre valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas relações políticas etc.). É contrastá-lo com nossas ideias sobre ética, política e moral. É verificar o quanto ele se aproxima da imagem que fazemos do que seja literatura.” (Márcia Abreu)



A leitura e os limites dos livros


Pensei em deixar somente a citação acima como um aperitivo do trabalho de Márcia Abreu acerca da Cultura Letrada. Talvez fosse bom acrescentar a pergunta: ”como uma tribo africana interpretaria Hamlet?” Mas, como muitos dos meus amigos já sabem, eu não consigo simplesmente indicar o livro sem comentar sua contribuição em minhas pesquisas recentes sobre a Leitura.
Clareza de seu discurso, reflexões sempre fundamentadas em fatos e exercícios convidativos já seriam argumentos suficientes. Mas foi a ousadia com que Márcia Abreu nos coloca diante do espelho, o principal motivo de minha surpresa e admiração.  A atitude de desmistificar a “imanente literariedade” tantas vezes martelada por críticos e professores é fundamental para compreender os empecilhos que afastam livros e leitores – sejam estes adultos, jovens ou crianças em fase escolar.  

Um resgate do espanto e da atitude investigadora na leitura
O texto parte de questões como “haverá livros bons em si?” ou “a beleza está nos olhos de quem os lê?” E, para investigar isso, a pesquisadora apresenta uma análise, bastante prática, de uma lista dos “melhores livros”, segundo um júri selecionado pela Folha de S. Paulo. Ao comparar os resultados com a lista de “melhores escritores do século XX”, eleitos pela revista IstoÉ, o simples contraste já denota o quanto é subjetiva cada recomendação. Márcia comenta elementos e critérios do júri e como estes critérios levam em conta aspectos políticos, sociais e culturais.
O texto me fez lembrar a fala com que o professor João Adolfo Hansen concluía algumas de suas aulas instigantes: “infelizmente, nem sempre o óbvio é evidente...” De fato, nada do que a autora expõe chega a ser novidade. Há escritos remotos com reflexões sobre o contexto no ato da leitura. Porém, tenho a impressão de que para boa parte dos estudantes de Letras, qualquer questionamento de princípios e valores aprendidos pode soar como heresia. Mesmo assim, a autora nos mostra que todos os esforços no sentido de enaltecer a literatura “como se fosse algo universal (...) próprio do ser humano” podem ser desastrosos, principalmente se, nisso, nos esquecermos de “discutir o que é literatura (...)” e reconhecê-la como “um fenômeno cultural e histórico, passível de receber diferentes definições conforme a época e o grupo social.” Portanto, “não há literariedade intrínseca, nem critérios atemporais”. É óbvio, mas não é preciso muito para notar que não é evidente...

Conceitos e preconceitos
Entre outros aspectos do livro, mais uma vez encontro comentários acerca das “instâncias de legitimação” que podem ou não reconhecer o trabalho de um escritor, como diz Fábio Lucas, em Crepúsculo dos Símbolos – reflexões sobre a história do livro no Brasil. Desta vez, para ilustrar suas  observações, Márcia Abreu retoma acontecimentos que já foram divulgados na imprensa e em obras de referência, mas que na correria cotidiana, são conhecidos e esquecidos com a mesma rapidez. Por exemplo, ela retoma uma experiência feita em 1999, quando a Folha de S. Paulo enviou um texto de Machado de Assis a grandes editoras, sujeitando-o à avaliação sem identificar o autor.  A rejeição geral foi uma polêmica discutida na ocasião, mas o olhar de Márcia Abreu revisita o caso a partir de outros referenciais – ressaltando que “saber que um texto é literário já provoca certo tipo de leitura.” 
As 125 páginas de análise são preciosas para quem hoje enfrenta o desafio de “formar leitores”, dentro e fora da sala de aula. Aliás, sobre isso, a autora também comenta que muitas vezes o problema fica camuflado em explicações mais fáceis como “a falência do ensino brasileiro... a ignorância que impede de perceber a excelência do texto...” Sendo que, nesta experiência com o texto de Machado, o fato de ter passado por “leitores de profissão” mostra o peso das expectativas e do conhecimento prévio sobre o autor no ato de ler.  
Acerca da relação com os best-sellers, Márcia Abreu apresenta resultados de pesquisas recentes sobre a leitura dos livros mais vendidos e, com isso, desconstrói ou pelo menos “desnaturaliza” discursos que rotulam este tipo de livro como uma “leitura alienadora”. Relatos de reflexão e transformação são mais frequentes do que os círculos eruditos se permitiriam reconhecer.  No entanto, este olhar mais aberto à obra antes de criticá-la também é raiz para a desconstrução de outro mito – o de que “a literatura, por si, torna-nos mais humanos”. Faz sentido, pois a existência de pessoas cultas participando das atrocidades em campos de concentração é apenas um dos muitos exemplos de suposições equivocadas. Como diz a autora “o fato é que há gente muito boa que nunca leu um livro e gente péssima que vive de livro na mão.”

Literatura como face viva de qualquer idioma
O livro Cultura Letrada – literatura e leitura aborda preconceitos que estão muito mais arraigados do que poderíamos supor. Passa pelas especificidades literárias do Cordel, pelo uso artístico da linguagem em ditados populares, pela noção “civilizatória” impregnada em cada imposição e, é claro, mostra o quanto a literatura – sendo, antes de tudo, uma manifestação “língua” – também se transforma no tempo e no espaço, assumindo novos valores e ideias de acordo com as necessidades locais.
Neste caso, é curioso reconhecer que muitos dos textos que eram mal vistos ou proibidos antigamente, hoje, são impostos aos leitores como modelos obrigatórios – e a partir disso, quem garante que o que é mal visto hoje, amanhã não será também um referencial? E mais! Vê-se neste livro e em outros, o quanto a atitude moralista de condenar obras e autores também é antiquada...
Para terminar, vale o registro de que em 1775, a partir de recomendações médicas do Dr. Tissot – portanto, baseadas em pesquisas científicas – havia a certeza de que “a leitura é prejudicial à saúde”. Ele não estava sozinho. Há publicações de 1795 que complementam os malefícios já advertidos – afinal, “a leitura forçava a mente a trabalhar com intensidade ao mesmo tempo que mantinha o corpo em repouso durante longos períodos”. Uma lista de sintomas, como dor de cabeça, enfraquecimento dos olhos, melancolia, insônia... não deixaram de ser “desculpas” até hoje... Mas por que então mudamos de opinião e agora, lutamos para conquistar leitores? Sim, o valor que atribuímos a leitura também mudou. Será que naquele tempo, alguém imaginaria essa mudança ousada, mesmo correndo tantos perigos?
A língua é viva e se transforma. E a literatura também é língua a ser lida e compreendida em diferentes olhares por diferentes leitores. 

*Márcia Abreu – Cultura Letrada: literatura e leitura.  Editora Unesp, 2006.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Crepúsculo dos símbolos*



Reflexões que perduram há mais de 20 anos


Nem tudo precisa ser definido em palavras, mas algo que não sei explicar direito pode ser compreendido por qualquer leitor: falo de um sutil “constrangimento” ao querer comentar um livro que não é nenhuma novidade no mercado. Pode ser que algumas pessoas digam “por que falar disso agora? Você está atrasada... todo o mundo já sabe disso” ou, o que é mais provável, “não é novidade, então ninguém quer saber...” Por mais ciente que eu esteja de que não há nada de mais em indicar leituras, ao dar uma olhada em outras páginas virtuais, senti que os livros já esgotados ou apenas disponíveis em sebos e bibliotecas não têm sido comentados com tanta frequência, a não ser nos casos de títulos indicados para uma prova ou pela inconveniente exigência de algum professor.
Mais uma vez deixei meus olhos passearem pelas estantes da Biblioteca Mário de Andrade e um título me chamou a atenção: Crepúsculo dos Símbolos: reflexões sobre o livro no Brasil. Trata-se de uma publicação de 1989, que exigiu de mim uma leitura pausada por subtítulos que já eram em si profundas indagações. O sumário apresenta itens como “o livro como objeto cultural”; “o livro à procura do leitor”; “o escritor e a vida intelectual”; “literatura, jornalismo e massificação”; “a crise da cultura literária no Brasil pós-64”, entre outros.
O ilustre autor, professor Fábio Lucas, tem uma vasta produção e pesquisa, tanto em literatura e crítica, quanto em outros ramos das ciências sociais, e neste trabalho reúne questionamentos que – a despeito de suas posições, hoje alteradas, ou não – continuam pertinentes no que se refere à leitura em nosso país.
As dificuldades, sobretudo, de contato com a literatura também não são novidade e, como educadora, posso afirmar que os problemas não se limitam a uma ou outra classe social. Para minha surpresa, o capítulo “O livro à procura do leitor” apresenta dados acerca de políticas de incentivo da época, que, embora provavelmente tenham evoluído bastante nos últimos anos, em diversos aspectos continuam limitadas, seja no ponto de vista comercial, seja no modo como se propicia a aproximação entre os livros e a comunidade.
De modo geral, o texto traz um retrato do complexo quadro social que obstrui o vínculo entre as pessoas que escrevem, o livro e o público. Fábio Lucas destaca mazelas econômicas e educacionais que ainda não foram resolvidas. A mais evidente é a falta de letramento – a gritante alfabetização funcional que não alcança a compreensão e interpretação dos textos. O autor indica uma série de fatores políticos e sociais que dificultam o reconhecimento da cultura escrita e a publicação das obras de novos escritores.
Há neste livro informações elaboradas sob um ponto de vista bastante polêmico, que parte de elementos como “a chegada do livro como instrumento de dominação, por meio dos jesuítas” (e, de modo mais amplo, do europeu), em contraposição à “resistência natural por parte das culturas ágrafas” – presentes entre os indígenas e africanos que formaram os alicerces da população do Brasil. Outro elemento é o fato de que até mesmo os “resíduos culturais brasileiros cultivam o não escrito”, pois não são raros os familiares que descartam anotações e correspondências de escritores por considerarem apenas fotografias e objetos como patrimônio a ser compartilhado.

As instâncias de reconhecimento e o marketing editorial
Pelo texto de Lucas, mergulhamos na reflexão sobre “escrever como trabalho”, pois aciona analogias e referenciais acerca das questões de remuneração. De fato, há ainda muita gente que enxerga com naturalidade o adiantamento financeiro para o conserto de uma máquina de lavar ou o de um encanamento, mas não admite qualquer provimento para o tempo e a estrutura de pesquisa e elaboração textual a que se empenha todo bom escritor. 
Há ainda um conjunto de considerações sobre o percurso para que o trabalho chegue a ser reconhecido como literatura. Entre muitos fatores, o texto elenca algumas dificuldades de publicação. Outros pensamentos se desdobram no espanto diante de expressões como “poetas independentes” – independentes de quê? (ou de quem?) – pergunta o autor ao comentar o peso das relações políticas e sociais nos círculos literários.
Com todos esses “entretantos”, há que se lembrar ainda de outras exigências pessoais constantemente impostas a quem escreve, principalmente, num meio em que há tanta pressão para mercantilizar a obra, nos moldes de sucesso na indústria cultural. Nesse aspecto, o autor de Crepúsculo dos Símbolos critica os best-sellers por conter uma “monotonia de recursos”, com “soluções narrativas e conteudísticas” que, embora atraiam grande público e vendagem, limitam-se a conceitos maniqueístas e “despreocupantes”. Para ele, o protagonista desse tipo de livro retrata uma busca de segurança no mundo conhecido e previsível, uma busca do absoluto que alimenta a produção de ídolos em detrimento das sutilezas do mito – infelizmente, o mesmo mito que, em sua complexidade, sobreviveria a tudo que é efêmero – inclusive, à moda e a outros processos que permeiam os interesses de mercado.
Especialmente acerca destas posições os best-sellers, encontrei um contraponto importante no livro de Márcia Abreu, Cultura Letrada – literatura e leitura (Editora Unesp, 2006), que pretendo comentar numa próxima ocasião. De qualquer forma, não posso negar a pertinência de questões colocadas por Fábio Lucas, como: “um livro é bom porque vende muito, ou, vende muito porque é bom?” Não que haja qualquer problema em vender livros – ao contrário, o próprio autor discorre sobre a necessidade de aumentar também o número de livrarias e os acervos das bibliotecas para levar o livro para mais perto do leitor. Sua crítica vai no sentido de apontar que muitos dos suplementos literários e menções a livros na mídia têm muito mais a função de marketing editorial do que de fato difundir as reflexões e o contato com o livro. Há 21 anos, portanto, o autor coloca uma questão que é válida ainda hoje: terá o livro se convertido em apenas “uma forma de consumo a mais”?
Enfim, não é minha intenção recontar o livro, mas comentar reflexões que também experimentei durante a leitura e convidar outros leitores a compartilhar suas impressões sobre essas ideias que certamente continuarão a atravessar o tempo.




Lucas, Fábio. Crepúsculo dos símbolos: reflexões sobre o livro no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1989 (coleção literatura-crítica). 



domingo, 21 de novembro de 2010

Alberto Manguel em São Paulo

Um rapaz caminha pela biblioteca à procura de um livro que o convide à leitura. Certamente seus olhos passeiam por capas, lombadas, cores e formatos. No entanto, ao interessar-se por um determinado exemplar pela ficha da biblioteca repara que ele jamais fora emprestado. Que surpresa! Será que este livro comprado há quase um século, passado de prateleira em prateleira em sucessivas mudanças, jamais aberto? O rapaz caminha até o balcão e, para confirmar seu pensamento, pergunta em tom de espanto comedido: 
– Até hoje este livro “nunca” foi lido? 
E o bibliotecário, após verificá-lo e registrar o empréstimo, o entrega com benevolência: 
– Pois é! Nós o compramos especialmente para você! 



Ler, ver e ouvir um autor

Além da história acima, cada pessoa que esteve presente à entrevista de Alberto Manguel, em 18 de novembro no Sesc Pinheiros*, guarda na lembrança a imagem de um homem elegante,  bem humorado e generoso em conselhos e citações. Não creio que haja apuro jornalístico capaz de precisar tantas referências – tantos assuntos e pensamentos – tudo encadeado por um fio de intimidade com as palavras e com os livros. Cabe lembrar que toda a conversa começou com uma pergunta muito pessoal: “como é a organização e manutenção de sua biblioteca particular, com cerca de 35 mil livros?” – atente-se para o detalhe de que o escritor, nascido na Argentina, já mudou de residência diversas vezes, passando por Israel, Itália, França, Taiti, entre outros. Atualmente vive no Canadá. Ao comentar as mudanças, chegou a dizer que quando estava longe de sua biblioteca, “à noite, ouvia os livros chamando-o.”
O entrevistador logo no início da conversa queria saber se ele já havia pensado em o que seria feito do acervo após sua morte, e Manguel apenas citou uma tradição dos criadores de abelhas. “Dizem que quando a pessoa que cuida de abelhas morre, alguém deve ir até lá e avisá-las... Pois bem, quero que avisem os meus livros.” E com delicadeza comunicou que não lhe incomodava tocar no tema da morte: “é importante aceitar que o livro que nos fez feliz tem uma última página...”
Esses e outros comentários traziam vividamente o laço afetivo que une uma pessoa a sua biblioteca. Sua história poderia ser contada a partir dela, a partir do modo peculiar como a organiza por línguas e datas. “Claro que dentro disso”, acrescentou, “existem subseções, mas como se trata de uma biblioteca particular e não pública, a organização pode parecer caótica. É necessário que seja coerente apenas para mim. Diante disso, por exemplo, posso guardar meus livros de teologia na seção de literatura fantástica”.
Nem precisaria dizer que o riso foi inevitável... Depois disso, fazendo a primeira das várias referências a Jorge Luís Borges, destacou com admiração o constante o exercício de diluir a classificação por gêneros.  “Quando o escritor está trabalhando, o que ele sabe é que está escrevendo um texto – um livro.” E sabemos que ele tem razão. Realidade e ficção constantemente se mesclam, seja pelo ponto de vista que limita fatos, seja pela imaginação que é sempre calcada no ato de combinar experiências reais.
Com uma coerente negação dos parâmetros academicistas, ao ser questionado sobre a metalinguagem em seus textos, Manguel disse sorrindo “não gosto de nenhuma palavra que comece com meta...” E elencou algumas de suas experiências hilárias quando franceses tomaram uma bibliografia fictícia do livro O amante detalhista, como uma autoridade real. Falou também de uma série de questões políticas para a apresentação do livro Todos os homens são mentirosos. Nesse caso, ao comentar a situação de exílio de seu personagem, sentenciou “somos muito mais nômades do que podemos crer”.

Existir entre livros e leitores
Para registrar minha memória, caio no dilema: me lembrar de tantas coisas e ter de deixar de dizê-las, ao menos por enquanto... Preciso de um foco e, ao renunciar a dezenas de outros agradáveis caminhos, opto por uma declaração em especial:
“O livro não precisa do leitor para existir. Ele pode esperar séculos para ser lido...”
Lembrei-me de imediato de um comentário de Mário de Andrade, dizendo que “ninguém escreve para si mesmo”. Mas logo o próprio Manguel aplacou minha angústia ao comentar que um de seus recursos para lidar com os inevitáveis bloqueios de escritor é justamente imaginar o leitor a seu lado, espiando o que escreve, por cima de seu ombro. Vez ou outra chega a escutá-lo perguntando “Por que você está dizendo estas coisas a mim, quem nem o conheço?” Bastaria isso para mergulhar em obras, como A Cidade das Palavras – as histórias que contamos para saber quem somos,  mas como eu já disse em outras ocasiões, não é a isso que me proponho aqui. Quero guardar e, ao mesmo tempo, compartilhar a experiência de ver e ouvir o escritor. 
É certo, portanto, que ele também reconhece a presença do “leitor imaginário” como parte da construção do texto. No entanto, sua declaração traz  uma luz sobre a perenidade do livro, comparada à frágil e efêmera existência do leitor. Afinal, é verdade! – Quem nunca encontrou em escritos remotos algum tipo de identificação...  Aquela sensação de que é às nossas mãos que foi endereçada a mensagem, e não a quaisquer outras no mundo.
Manguel nos aproxima dos livros como uma experiência valiosa. “Sempre que tenho um problema encontro num livro uma passagem que me ajuda a ir adiante”, comentou. Esta percepção também relatada por personalidades históricas como Montesquieu, revela um entendimento do livro que faz parte de uma vivência pessoal. O livro e a leitura são antes de tudo, uma experiência. O conhecimento, o desenvolvimento do intelecto, o repertório e tudo mais são consequências. Elementos que vão se construir de maneira diferente para cada leitor – cada um a seu tempo, de acordo com suas preferências e indagações.
Mas, como fica a questão da leitura em tempos de mídia eletrônica, internet, best-sellers e tudo o que caracteriza a “era da informação”?  Neste ponto o autor surpreendeu muita gente. Ao ser questionado,  por exemplo, sobre sua relação com a internet, ele respondeu: “é similar a minha relação com um camelo” e, após uma breve pausa com o riso do público, completou “admiro, porém não uso”.  A seguir desenvolveu brevemente sua reflexão sobre esta escolha a partir de suas necessidades cotidianas e nos conduziu a outras considerações. Não criticou as vantagens do mundo virtual. Inclusive ao entrar nos aspectos facilitadores da rede para a leitura “distraída” ou descompromissada, com sons, imagens e hiperlinks não foi taxativo nem contestador. Aliás, seu comentário sorridente beirava a impressão de banalidade – parecia que se limitaria à sensata observação de que livro e computador são suportes diferentes que desencadeiam diferentes modos de leitura e apreensão, mas Manguel lembrou-nos de um fato: há uma habilidade de leitura profunda que está sendo perdida.
Mesmo entre estudantes universitários percebe-se que o uso da internet como “única” fonte de pesquisa é um recurso superficial e limitado. Alia-se a isto, a prática de leituras diagonais, buscando  quantidade de dados sem necessariamente saber como lidar com eles – são atitudes que infelizmente representam um grande risco a que nos expomos: a perda de um saber adquirido em anos de prática. Afinal, a leitura profunda, reflexiva e geradora de novos conhecimentos não é um saber herdado. Exige participação ativa, questionamento – enfim, exige o senso crítico que é construído passo a passo e que não deve ser adiado, como fazem muitos dos apressados leitores da era digital.
Com algum desapontamento, Manguel – que prefere livros usados e por isso é frequentador de sebos e antiquários – percebe que nos últimos anos esta passividade tem chegado até ambientes antes formados por pessoas mais atentas aos meandros entre o conhecimento e a informação. É lamentável que hoje, muitas vezes, nem o vendedor tenha ideia de que um livro, além da quantia estipulada para a compra, possa ter algum outro tipo de valor.

Debaixo das palavras
Então, diante desse contexto todo nos perguntamos: o que fazer?
Se me permitem dizer, depois de ouvi-lo fiquei pensando que, em alguma medida, hoje é mais urgente socorrer a capacidade de leitura, do que a nossa deficiente habilidade escrita – outra dolorosa mazela educacional. Não acho que as coisas estejam separadas. Apenas reconheço no que ouvi um apelo de alguém de um outro tempo: alguém que “usa o computador como uma máquina de escrever” e só escreve tão impressionantemente bem porque mergulhou na experiência profunda de ser um bom leitor.
Suas palavras, mais maduras que sua barba grisalha, emanava a sabedoria e a tranquilidade de quem lê e escreve há tantos anos. E mesmo a quem tem sede de leitura ele, por experiência, fez outra observação: “eu também já fui um jovem estudante” – disse – “já tive esta ilusão e ansiedade de que era preciso conhecer tudo, estar a par de tudo que acontecia, ler todos os livros, mas com os anos veio o alívio de saber que não vou ler tudo, e com isso, a oportunidade de me dedicar às coisas conhecidas. A oportunidade de aprofundar-me no conhecido e ver o que há debaixo das palavras.”
Aliás, ainda falando do dedicar-se às coisas conhecidas, Alberto Manguel fez questão de registrar sua admiração profunda pelo papel do tradutor. Este profissional que por definição precisa ser um “leitor profundo”, cria e recria as obras, rearmando  cada livro  em seu idioma. Para Manguel, “a História da Literatura deve muito ao tradutor, pois é ele que possibilita a continuidade atualizada, mesmo quando o autor se foi...” Graças aos tradutores, temos este fenômeno de “reencarnação da obra” e, graças a eles também, hoje o mundo inteiro continua encontrando a universalidade em Homero, Dante e tantos outros.
De fato foi uma entrevista memorável. Porém se ao final do texto ainda ficou uma interrogação acerca das palavras iniciadas com o prefixo meta, preciso dizer que uma moça da plateia, bem ao final do evento, fez a pergunta que deu voz ao nosso alvoroço interior: “o que você pensa da palavra metáfora?” Houve algum suspense, pois mesmo com respeito e curiosidade, a pergunta tinha um gostinho provocativo. Foi o único instante em que vi o público encarando-o, como quem diz “xeque”, com um olhar desafiador.  
“Toda regra tem sua exceção. A metáfora é a pedra fundamental da literatura... Mas ao mesmo tempo, ela confessa nossa dificuldade em comunicar as coisas de maneira direta, sem ambiguidade.”
Não sei exatamente quais foram as palavras que vieram depois disso. Mesmo porque com esta declaração, meu pensamento bateu asas. Acho que foi exatamente ali que meu texto começou.

* Referência a evento que fez parte da programação da "Balada Literária". 


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Muito além dos e-books*


Em tempos de e-books e aceleradas tecnologias para a digitalização dos acervos de grandes bibliotecas, Robert Darnton – historiador, professor e atual diretor da Biblioteca da Universidade de Harvard – reúne em seu novo livro onze ensaios que trazem ao leitor a complexidade das discussões acerca de nossa relação com os livros nesta entrada no século XXI.
O autor que confessa sua “apologia descarada em favor da palavra impressa” logo na primeira página surpreende o leitor com dados e argumentos que vão de encontro a mitos e preconceitos enraizados – tanto entre grupos que se proclamam “defensores” dos livros, quanto entre as gerações que pressupõem a evolução tecnológica a todo custo.
Mais do que discutir se o livro – enquanto objeto impresso – acabará ou não com a chegada das novas mídias, o objetivo de Darnton é expor as camadas de interpretação e as efetivas consequências de todo esse período de transição, que, historicamente, nem se apresenta tão inusitado quanto parece.
É claro que o texto considera todas as especificidades do livro em sua materialidade que implica não somente em memórias sensoriais do ato da leitura, como também desdobramentos econômicos, políticos e sociais em diferentes épocas.
Um momento marcante da leitura já se dá ao descrever o momento em que foi nomeado diretor da Biblioteca de Harvard, sem imaginar que nas semanas seguintes  mergulharia no universo espinhoso das leis de direitos autorais e políticas públicas, com a proposta do Google de digitalizar o acervo que estava agora sob sua responsabilidade. Leis, emendas, influências ...  Até Mickey Mouse entra no texto para exemplificar o grau de especificidade entre diferentes detentores de Copyright.
Segundo Darnton, não demorou que viessem à tona os interesses comerciais em “disponibilizar o acesso a livros raros” por meio de assinaturas – um processo que o autor comenta a partir de comparações pertinentes  com casos de revistas de pesquisa e outras propostas que surgiram  com a mesma bandeira de “democratização”. Como o autor também é fundador do Programa Gutenberg-e, para a divulgação de teses no meio digital, o repertório de ocorrências e considerações alimentam a reflexão do leitor de maneira aberta, apontando controvérsias,  referências e espaços de aprofundamento das questões levantadas.
Os ensaios revelam ainda discussões polêmicas acerca da preservação de documentos e reflexões sobre o papel da bibliografia na preservação e, principalmente, na produção do conhecimento em qualquer área de pesquisa. Enfim, A questão dos livros: passado, presente, futuro é um mergulho no conceito sempre atualizado de “Era da Informação”.

* Texto publicado no Jornal da ABI - Associação Brasileira de Imprensa, edição 358, disponível no link: http://www.readoz.com/publication/read?i=1031251#page46 
Livro: A questão dos livros: passado, presente, futuro,  de Robert Darnton (Tradução Daniel Pellizzari). 
Companhia das Letras, 2010.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Manuscrito a Felipa*


  


Ô, prosa...
Difícil falar de um livro de Adélia sem entrar em intimidades de mim mesma, na “sina” de ser mulher querendo se mostrar toda em escrita, quase em tom de oração.
Felipa está certa! E Deus também me livre de ser pedante, de fazer análise sistemática de cada trechinho, citando críticos e outros especialistas que mal conseguem dizer amém.
Vim aqui só pra dar a mão. Estar com ela em seu medo da morte, em seus mergulhos em memórias e comentários de uma gente eternamente viva, que continua a cutucar o sentimento de que tudo poderia ter sido diferente se a nossa coragem conseguisse ultrapassar o limite decidido, da conveniência e até da espera de solução abençoada. Acha que estou sonhando? Não... Não  estou sonhando, não...
Aliás, sonho é aquela coisa de beleza revirada que xeretei no caderno dela... Confundindo as idades, os amores e as certezas que todo o mundo guarda como regra de vida. Nos Manuscritos de Felipa, a gente sabe que está diante de algo tão verdadeiro, tão forte, que pode até ser ficção.
Quem é Felipa?, ah... Felipa é a mulher do livro, uai! E se a pessoa precisa tanto distinguir quem é autor, quem é narrador... Pode ir lá pra Usp, ler Benjamin, Wellek  e Warren... Pode ir ter certeza ou ficar com dúvida à vontade...  Hoje, eu já disse: eu não estou aqui pra isso não... Basta para mim saber que cabem ali mulheres que somos ou que não chegamos a ser.
Ela filosofa com o pé no chão, como todo mundo, cedo ou tarde, se olha e faz. Diz que “só fala o que dói  e grito todo mundo entende”. Mas por que é que a gente gosta disso, hein?
Ai, Felipa... Eu nem deveria lhe dizer: peguei o livro por acaso, e no mesmo dia, vi um pedaço de um filme na televisão. Um moço falava de Cabala pra uma menininha que escrevia as letras no escuro. Ele dizia que se ela estivesse em sintonia com sei-la-o-quê... a escrita seria mais que uma forma de oração, ela seria instrumento para a palavra de Deus! Quer saber se eu acredito nisso?
Ah... Não sei, não... Depois vi mais um pedacinho de outro canal, com o menino Em busca da Terra do Nunca – o finalzinho do filme, menos de quinze minutos – e voltei a ler, bem na parte em que fala de acordar de noite pra rezar! Ai, que me deu até um negócio! Será que só eu vi o fio da vida nas três coisas?
Sei lá! Por garantia, catei o primeiro caderno e comecei a escrever... Eu não tinha outra solução. Ia morrer engasgada com estas palavras e seria cúmplice daqueles que matam o mundo por “inanição de palavras”... Eh, Felipa, de onde é que você tira essas coisas, hein?
O que sei, é que quando terminei o meu texto, lembrei do Gênesis, daquela parte bonita de Deus criando o mundo em palavras, e principalmente de seu refrão satisfeito: “e Ele viu que era bom”.

*Sobre o livro  Manuscritos de Felipa, de Adélia Prado (Siciliano, 1999).

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Saramago – mais humano e mais jovem


O que resta dizer acerca da morte de José Saramago? A imprensa, mesmo com revistas e cadernos de finais de semana completamente fechados, conseguiu se desdobrar em edições especiais recheadas de depoimentos de críticos e amigos deste escritor que há muito já era internacionalmente reconhecido como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, com o livro Memorial do convento em 1998.

Em meio aos comentários sobre a Copa do Mundo em lotações, filas e bares, havia, sim, quem falasse “Você viu...? O Saramago morreu...”

Sabe-se que a melhor homenagem é convidar o público a ler seus livros. Sejam eles obras polêmicas como o Evangelho Segundo Jesus Cristo, mostrando um menino Jesus humano, que “chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse único e mesmo motivo (...)”, ou como seu Conto da Ilha Desconhecida, com a corajosa viagem por caminhos que nenhum mapa pode registrar. No entanto, apenas indicar seus livros não parecerá suficiente para quem se lembra vê-lo e ouvi-lo pessoalmente, mesmo que em eventos como o lançamento do livro A viagem do elefante, em 2008, no Sesc Pinheiros.

Quem esteve lá deve se lembrar que tal experiência é mais do que estar diante de um autor renomado. Trata-se de uma oportunidade para abrir os olhos diante do que é óbvio, mas tantas vezes ignorado – há sempre um ser humano por trás de um objeto-livro.

Naquele evento, todos viram seu esforço para chegar ao palco com a saúde debilitada aos 86 anos. Ouviram suas considerações sobre as vantagens de envelhecer, quando se toma em conta qual seria a única alternativa possível; ouviram seus argumentos para destacar que foi um “milagre da ciência” ele ter escapado da morte em fevereiro daquele ano... E que, é claro, Deus não tinha nada a ver com isso...

Esses detalhes, ainda que até certo ponto sentimentais, são importantes, porque naquela noite houve quem o fotografasse, filmasse na tela do celular, e, principalmente, centenas de pessoas comprando o livro à espera de um desejado autógrafo.

Deve haver quem se lembre também do olhar interrogativo de Saramago quando, após tecer seus comentários e conselhos aos jovens escritores, pronunciou a palavra “finalmente...” para concluir a palestra pois houve um alvoroço na plateia. Em todas as fileiras, pessoas se levantando para correr até a fila no saguão à espera do “autógrafo” – mas se todos sabiam de seu estado de saúde e do quanto essa tarefa seria desgastante (aliás, houve nos jornais comentários acerca de seu esforço para atender a tal demanda na noite citada e em outras ocasiões), fica ainda hoje a pergunta: será que aquelas pessoas viram mesmo o homem por trás do livro?

O fato é que todos testemunharam a capacidade daquele homem ao arrancar suspiros da plateia. Isso aconteceu quando, além de dizer que a esposa Pilar o havia segurado pelo colarinho para que ele não morresse – e que na verdade somente por isso ele não se foi... –, acrescentou uma declaração de amor:

“Tenho oitenta e seis anos, mas se eu tivesse morrido um dia antes de conhecer Pilar, teria morrido muito mais velho do que sou hoje.”

Enfim, recentemente comentaram também outra declaração à esposa:

“Eu tenho pena de morrer... A vida é tão bonita.”

...

Nós também temos, José... Então, deixaremos você vivo, conosco, sempre.


*Texto escrito em 15/07/2010.

domingo, 25 de julho de 2010

Dia do Escritor

O que se faz nesta data dedicada ao escritor?

Hoje em dia associam a Páscoa com a troca chocolates, assim como panetones e presentes já estão incorporados à ideia de Natal. Mas entre centenas de efemérides cotidianas, o dia do escritor chamou minha atenção.

Talvez as pessoas comprem mais livros... Não, claro que não! Não estamos em 15 de março – o dia do consumidor. Deve-se ler, ler e ler... Certo. Porém, o que restará para o dia do Leitor, que é dia 7 de janeiro?

Acabo de saber da data pelo Almanaque Brasil e fiquei quieta, ansiosa e instigada. Para que se inventaria isso se não para ter com os homenageados algum tipo de atitude especial?

De imediato penso que a maior alegria do escritor é ser lido; mas isso basta?

Além do mais, ai que difícil escolher: Rosa, Graciliano, Machado, Oscar Wilde, Drummond... ops! Perdoem-me se por impulso comecei a embrenhar-me no ramo dos poetas, que estão distintamente reservados para 20 de outubro.

Se alguém me explicasse de maneira clara, eu seria grata. Tudo me parece tão vago... Pergunto, por exemplo, se haverá uma data específica para as escritoras ou deverei incluir Clarice, Virgínia, Raquel e tantas outras neste simulacro masculino para tão complexa realidade?

Afinal, é tão complicado definir o que é um escritor? – Nem entro nas diferenças entre o bom e o mau escritor. Parto de uma questão mais básica: quando homenageiam “o escritor”, referem-se a autores de obras literárias ou aos responsáveis por todo e qualquer tipo de texto... Na verdade o que quero saber é se pelo menos nesta data valem aqueles “arremedos” que mantenho engasgados no limbo da gaveta. Outra dúvida é, na falta de um Rilke, hoje em dia, há alguém disposto a dizer se você é ou não é um escritor? Como é que se descobre se já pode comemorar a data ou se é melhor marcar na folhinha mais um ano de prazo para a meta, às vezes, aparentemente inalcançável. Há saída? Ou melhor, há entrada para este time? E, se há, que linha tênue é esta sobre a qual bambeiam os autores dos textos não publicados?

...

Sei que o dia de São Lucas – aquele mesmo, o evangelista – é o dia do pintor. Ainda não estou inteirada se há um padroeiro a quem se apele para ver as letras impressas num volume com capa, mesmo porque, com todo respeito a São Francisco de Salles, não dá para esquecer que o que tornou o cara famoso mesmo foi o fato de enfrentar os obstáculos escrevendo cartas.

Não sei. Realmente não sei... E nem sei se é preciso saber algo!

Enquanto isso, por garantia, não custa acender uma vela a Saramago... Nem que seja para alumiar a mesa enquanto se pega o velho caderno para voltar a escrever.

Abraços a todos.

Rita Braga

* Voltei repleta de perguntas... Para começar, ou "recomeçar", exponho um texto que acabo de enviar aos colegas do Recanto das Letras. Já era hora... e a data não poderia passar em branco. Além disso, senti vontade de mostrar em desenho algumas das pequenas belezas que gosto de retratar.