Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

domingo, 21 de novembro de 2010

Alberto Manguel em São Paulo

Um rapaz caminha pela biblioteca à procura de um livro que o convide à leitura. Certamente seus olhos passeiam por capas, lombadas, cores e formatos. No entanto, ao interessar-se por um determinado exemplar pela ficha da biblioteca repara que ele jamais fora emprestado. Que surpresa! Será que este livro comprado há quase um século, passado de prateleira em prateleira em sucessivas mudanças, jamais aberto? O rapaz caminha até o balcão e, para confirmar seu pensamento, pergunta em tom de espanto comedido: 
– Até hoje este livro “nunca” foi lido? 
E o bibliotecário, após verificá-lo e registrar o empréstimo, o entrega com benevolência: 
– Pois é! Nós o compramos especialmente para você! 



Ler, ver e ouvir um autor

Além da história acima, cada pessoa que esteve presente à entrevista de Alberto Manguel, em 18 de novembro no Sesc Pinheiros*, guarda na lembrança a imagem de um homem elegante,  bem humorado e generoso em conselhos e citações. Não creio que haja apuro jornalístico capaz de precisar tantas referências – tantos assuntos e pensamentos – tudo encadeado por um fio de intimidade com as palavras e com os livros. Cabe lembrar que toda a conversa começou com uma pergunta muito pessoal: “como é a organização e manutenção de sua biblioteca particular, com cerca de 35 mil livros?” – atente-se para o detalhe de que o escritor, nascido na Argentina, já mudou de residência diversas vezes, passando por Israel, Itália, França, Taiti, entre outros. Atualmente vive no Canadá. Ao comentar as mudanças, chegou a dizer que quando estava longe de sua biblioteca, “à noite, ouvia os livros chamando-o.”
O entrevistador logo no início da conversa queria saber se ele já havia pensado em o que seria feito do acervo após sua morte, e Manguel apenas citou uma tradição dos criadores de abelhas. “Dizem que quando a pessoa que cuida de abelhas morre, alguém deve ir até lá e avisá-las... Pois bem, quero que avisem os meus livros.” E com delicadeza comunicou que não lhe incomodava tocar no tema da morte: “é importante aceitar que o livro que nos fez feliz tem uma última página...”
Esses e outros comentários traziam vividamente o laço afetivo que une uma pessoa a sua biblioteca. Sua história poderia ser contada a partir dela, a partir do modo peculiar como a organiza por línguas e datas. “Claro que dentro disso”, acrescentou, “existem subseções, mas como se trata de uma biblioteca particular e não pública, a organização pode parecer caótica. É necessário que seja coerente apenas para mim. Diante disso, por exemplo, posso guardar meus livros de teologia na seção de literatura fantástica”.
Nem precisaria dizer que o riso foi inevitável... Depois disso, fazendo a primeira das várias referências a Jorge Luís Borges, destacou com admiração o constante o exercício de diluir a classificação por gêneros.  “Quando o escritor está trabalhando, o que ele sabe é que está escrevendo um texto – um livro.” E sabemos que ele tem razão. Realidade e ficção constantemente se mesclam, seja pelo ponto de vista que limita fatos, seja pela imaginação que é sempre calcada no ato de combinar experiências reais.
Com uma coerente negação dos parâmetros academicistas, ao ser questionado sobre a metalinguagem em seus textos, Manguel disse sorrindo “não gosto de nenhuma palavra que comece com meta...” E elencou algumas de suas experiências hilárias quando franceses tomaram uma bibliografia fictícia do livro O amante detalhista, como uma autoridade real. Falou também de uma série de questões políticas para a apresentação do livro Todos os homens são mentirosos. Nesse caso, ao comentar a situação de exílio de seu personagem, sentenciou “somos muito mais nômades do que podemos crer”.

Existir entre livros e leitores
Para registrar minha memória, caio no dilema: me lembrar de tantas coisas e ter de deixar de dizê-las, ao menos por enquanto... Preciso de um foco e, ao renunciar a dezenas de outros agradáveis caminhos, opto por uma declaração em especial:
“O livro não precisa do leitor para existir. Ele pode esperar séculos para ser lido...”
Lembrei-me de imediato de um comentário de Mário de Andrade, dizendo que “ninguém escreve para si mesmo”. Mas logo o próprio Manguel aplacou minha angústia ao comentar que um de seus recursos para lidar com os inevitáveis bloqueios de escritor é justamente imaginar o leitor a seu lado, espiando o que escreve, por cima de seu ombro. Vez ou outra chega a escutá-lo perguntando “Por que você está dizendo estas coisas a mim, quem nem o conheço?” Bastaria isso para mergulhar em obras, como A Cidade das Palavras – as histórias que contamos para saber quem somos,  mas como eu já disse em outras ocasiões, não é a isso que me proponho aqui. Quero guardar e, ao mesmo tempo, compartilhar a experiência de ver e ouvir o escritor. 
É certo, portanto, que ele também reconhece a presença do “leitor imaginário” como parte da construção do texto. No entanto, sua declaração traz  uma luz sobre a perenidade do livro, comparada à frágil e efêmera existência do leitor. Afinal, é verdade! – Quem nunca encontrou em escritos remotos algum tipo de identificação...  Aquela sensação de que é às nossas mãos que foi endereçada a mensagem, e não a quaisquer outras no mundo.
Manguel nos aproxima dos livros como uma experiência valiosa. “Sempre que tenho um problema encontro num livro uma passagem que me ajuda a ir adiante”, comentou. Esta percepção também relatada por personalidades históricas como Montesquieu, revela um entendimento do livro que faz parte de uma vivência pessoal. O livro e a leitura são antes de tudo, uma experiência. O conhecimento, o desenvolvimento do intelecto, o repertório e tudo mais são consequências. Elementos que vão se construir de maneira diferente para cada leitor – cada um a seu tempo, de acordo com suas preferências e indagações.
Mas, como fica a questão da leitura em tempos de mídia eletrônica, internet, best-sellers e tudo o que caracteriza a “era da informação”?  Neste ponto o autor surpreendeu muita gente. Ao ser questionado,  por exemplo, sobre sua relação com a internet, ele respondeu: “é similar a minha relação com um camelo” e, após uma breve pausa com o riso do público, completou “admiro, porém não uso”.  A seguir desenvolveu brevemente sua reflexão sobre esta escolha a partir de suas necessidades cotidianas e nos conduziu a outras considerações. Não criticou as vantagens do mundo virtual. Inclusive ao entrar nos aspectos facilitadores da rede para a leitura “distraída” ou descompromissada, com sons, imagens e hiperlinks não foi taxativo nem contestador. Aliás, seu comentário sorridente beirava a impressão de banalidade – parecia que se limitaria à sensata observação de que livro e computador são suportes diferentes que desencadeiam diferentes modos de leitura e apreensão, mas Manguel lembrou-nos de um fato: há uma habilidade de leitura profunda que está sendo perdida.
Mesmo entre estudantes universitários percebe-se que o uso da internet como “única” fonte de pesquisa é um recurso superficial e limitado. Alia-se a isto, a prática de leituras diagonais, buscando  quantidade de dados sem necessariamente saber como lidar com eles – são atitudes que infelizmente representam um grande risco a que nos expomos: a perda de um saber adquirido em anos de prática. Afinal, a leitura profunda, reflexiva e geradora de novos conhecimentos não é um saber herdado. Exige participação ativa, questionamento – enfim, exige o senso crítico que é construído passo a passo e que não deve ser adiado, como fazem muitos dos apressados leitores da era digital.
Com algum desapontamento, Manguel – que prefere livros usados e por isso é frequentador de sebos e antiquários – percebe que nos últimos anos esta passividade tem chegado até ambientes antes formados por pessoas mais atentas aos meandros entre o conhecimento e a informação. É lamentável que hoje, muitas vezes, nem o vendedor tenha ideia de que um livro, além da quantia estipulada para a compra, possa ter algum outro tipo de valor.

Debaixo das palavras
Então, diante desse contexto todo nos perguntamos: o que fazer?
Se me permitem dizer, depois de ouvi-lo fiquei pensando que, em alguma medida, hoje é mais urgente socorrer a capacidade de leitura, do que a nossa deficiente habilidade escrita – outra dolorosa mazela educacional. Não acho que as coisas estejam separadas. Apenas reconheço no que ouvi um apelo de alguém de um outro tempo: alguém que “usa o computador como uma máquina de escrever” e só escreve tão impressionantemente bem porque mergulhou na experiência profunda de ser um bom leitor.
Suas palavras, mais maduras que sua barba grisalha, emanava a sabedoria e a tranquilidade de quem lê e escreve há tantos anos. E mesmo a quem tem sede de leitura ele, por experiência, fez outra observação: “eu também já fui um jovem estudante” – disse – “já tive esta ilusão e ansiedade de que era preciso conhecer tudo, estar a par de tudo que acontecia, ler todos os livros, mas com os anos veio o alívio de saber que não vou ler tudo, e com isso, a oportunidade de me dedicar às coisas conhecidas. A oportunidade de aprofundar-me no conhecido e ver o que há debaixo das palavras.”
Aliás, ainda falando do dedicar-se às coisas conhecidas, Alberto Manguel fez questão de registrar sua admiração profunda pelo papel do tradutor. Este profissional que por definição precisa ser um “leitor profundo”, cria e recria as obras, rearmando  cada livro  em seu idioma. Para Manguel, “a História da Literatura deve muito ao tradutor, pois é ele que possibilita a continuidade atualizada, mesmo quando o autor se foi...” Graças aos tradutores, temos este fenômeno de “reencarnação da obra” e, graças a eles também, hoje o mundo inteiro continua encontrando a universalidade em Homero, Dante e tantos outros.
De fato foi uma entrevista memorável. Porém se ao final do texto ainda ficou uma interrogação acerca das palavras iniciadas com o prefixo meta, preciso dizer que uma moça da plateia, bem ao final do evento, fez a pergunta que deu voz ao nosso alvoroço interior: “o que você pensa da palavra metáfora?” Houve algum suspense, pois mesmo com respeito e curiosidade, a pergunta tinha um gostinho provocativo. Foi o único instante em que vi o público encarando-o, como quem diz “xeque”, com um olhar desafiador.  
“Toda regra tem sua exceção. A metáfora é a pedra fundamental da literatura... Mas ao mesmo tempo, ela confessa nossa dificuldade em comunicar as coisas de maneira direta, sem ambiguidade.”
Não sei exatamente quais foram as palavras que vieram depois disso. Mesmo porque com esta declaração, meu pensamento bateu asas. Acho que foi exatamente ali que meu texto começou.

* Referência a evento que fez parte da programação da "Balada Literária". 


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Muito além dos e-books*


Em tempos de e-books e aceleradas tecnologias para a digitalização dos acervos de grandes bibliotecas, Robert Darnton – historiador, professor e atual diretor da Biblioteca da Universidade de Harvard – reúne em seu novo livro onze ensaios que trazem ao leitor a complexidade das discussões acerca de nossa relação com os livros nesta entrada no século XXI.
O autor que confessa sua “apologia descarada em favor da palavra impressa” logo na primeira página surpreende o leitor com dados e argumentos que vão de encontro a mitos e preconceitos enraizados – tanto entre grupos que se proclamam “defensores” dos livros, quanto entre as gerações que pressupõem a evolução tecnológica a todo custo.
Mais do que discutir se o livro – enquanto objeto impresso – acabará ou não com a chegada das novas mídias, o objetivo de Darnton é expor as camadas de interpretação e as efetivas consequências de todo esse período de transição, que, historicamente, nem se apresenta tão inusitado quanto parece.
É claro que o texto considera todas as especificidades do livro em sua materialidade que implica não somente em memórias sensoriais do ato da leitura, como também desdobramentos econômicos, políticos e sociais em diferentes épocas.
Um momento marcante da leitura já se dá ao descrever o momento em que foi nomeado diretor da Biblioteca de Harvard, sem imaginar que nas semanas seguintes  mergulharia no universo espinhoso das leis de direitos autorais e políticas públicas, com a proposta do Google de digitalizar o acervo que estava agora sob sua responsabilidade. Leis, emendas, influências ...  Até Mickey Mouse entra no texto para exemplificar o grau de especificidade entre diferentes detentores de Copyright.
Segundo Darnton, não demorou que viessem à tona os interesses comerciais em “disponibilizar o acesso a livros raros” por meio de assinaturas – um processo que o autor comenta a partir de comparações pertinentes  com casos de revistas de pesquisa e outras propostas que surgiram  com a mesma bandeira de “democratização”. Como o autor também é fundador do Programa Gutenberg-e, para a divulgação de teses no meio digital, o repertório de ocorrências e considerações alimentam a reflexão do leitor de maneira aberta, apontando controvérsias,  referências e espaços de aprofundamento das questões levantadas.
Os ensaios revelam ainda discussões polêmicas acerca da preservação de documentos e reflexões sobre o papel da bibliografia na preservação e, principalmente, na produção do conhecimento em qualquer área de pesquisa. Enfim, A questão dos livros: passado, presente, futuro é um mergulho no conceito sempre atualizado de “Era da Informação”.

* Texto publicado no Jornal da ABI - Associação Brasileira de Imprensa, edição 358, disponível no link: http://www.readoz.com/publication/read?i=1031251#page46 
Livro: A questão dos livros: passado, presente, futuro,  de Robert Darnton (Tradução Daniel Pellizzari). 
Companhia das Letras, 2010.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Manuscrito a Felipa*


  


Ô, prosa...
Difícil falar de um livro de Adélia sem entrar em intimidades de mim mesma, na “sina” de ser mulher querendo se mostrar toda em escrita, quase em tom de oração.
Felipa está certa! E Deus também me livre de ser pedante, de fazer análise sistemática de cada trechinho, citando críticos e outros especialistas que mal conseguem dizer amém.
Vim aqui só pra dar a mão. Estar com ela em seu medo da morte, em seus mergulhos em memórias e comentários de uma gente eternamente viva, que continua a cutucar o sentimento de que tudo poderia ter sido diferente se a nossa coragem conseguisse ultrapassar o limite decidido, da conveniência e até da espera de solução abençoada. Acha que estou sonhando? Não... Não  estou sonhando, não...
Aliás, sonho é aquela coisa de beleza revirada que xeretei no caderno dela... Confundindo as idades, os amores e as certezas que todo o mundo guarda como regra de vida. Nos Manuscritos de Felipa, a gente sabe que está diante de algo tão verdadeiro, tão forte, que pode até ser ficção.
Quem é Felipa?, ah... Felipa é a mulher do livro, uai! E se a pessoa precisa tanto distinguir quem é autor, quem é narrador... Pode ir lá pra Usp, ler Benjamin, Wellek  e Warren... Pode ir ter certeza ou ficar com dúvida à vontade...  Hoje, eu já disse: eu não estou aqui pra isso não... Basta para mim saber que cabem ali mulheres que somos ou que não chegamos a ser.
Ela filosofa com o pé no chão, como todo mundo, cedo ou tarde, se olha e faz. Diz que “só fala o que dói  e grito todo mundo entende”. Mas por que é que a gente gosta disso, hein?
Ai, Felipa... Eu nem deveria lhe dizer: peguei o livro por acaso, e no mesmo dia, vi um pedaço de um filme na televisão. Um moço falava de Cabala pra uma menininha que escrevia as letras no escuro. Ele dizia que se ela estivesse em sintonia com sei-la-o-quê... a escrita seria mais que uma forma de oração, ela seria instrumento para a palavra de Deus! Quer saber se eu acredito nisso?
Ah... Não sei, não... Depois vi mais um pedacinho de outro canal, com o menino Em busca da Terra do Nunca – o finalzinho do filme, menos de quinze minutos – e voltei a ler, bem na parte em que fala de acordar de noite pra rezar! Ai, que me deu até um negócio! Será que só eu vi o fio da vida nas três coisas?
Sei lá! Por garantia, catei o primeiro caderno e comecei a escrever... Eu não tinha outra solução. Ia morrer engasgada com estas palavras e seria cúmplice daqueles que matam o mundo por “inanição de palavras”... Eh, Felipa, de onde é que você tira essas coisas, hein?
O que sei, é que quando terminei o meu texto, lembrei do Gênesis, daquela parte bonita de Deus criando o mundo em palavras, e principalmente de seu refrão satisfeito: “e Ele viu que era bom”.

*Sobre o livro  Manuscritos de Felipa, de Adélia Prado (Siciliano, 1999).