Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

domingo, 18 de setembro de 2011

Mundos e referências

Leis da Integridade Criativa 
1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei. 
(Luiz Bras)


Segundo Pierre Bourdieu[1], “a cultura letrada, erudita, define-se pela referência; ela consiste no permanente jogo de referências que dizem respeito mutuamente umas às outras; ela não é nada mais do que esse universo de referências que são indissoluvelmente diferenças e reverências, distanciamentos e atenções.” Então, vale abrir espaço para a dúvida: o que me leva a escrever é esta eventual dinâmica em que estou imersa, ou, antes, fui seduzida pelas três bem humoradas leis de Luiz Bras[2]. Na verdade muitos elementos me motivaram a registrar o evento que foi, para mim, a leitura de seu livro.
Este autor, que assina também a coluna Ruído Branco, no jornal Rascunho, traz neste pequeno volume muitas vozes e olhares sobre a literatura contemporânea. Um discurso crítico renovado, elegante e inteligente. Algo que pelo menos me garantiu nesta pseudo-resenha o cumprimento da primeira de suas leis.

Mudar é mudar em todas as direções
Literatura, ficção, ética, ciência... São tantos os assuntos entrelaçados que até fica difícil eleger um ou dois tópicos para apresentar o livro. Talvez pelo rumo de minha própria prosa neste blog, os mais marcantes sejam os textos “Fim do papel, fim da poesia” e “o autor e o seu editor”. Porém, não somente nestes, reflexões sobre as novas mídias, mercado editorial e o perpétuo medo da mudança se desenrolam com imagens e citações extraordinárias:
“[...] Agora podemos ver a poesia na UTI, inconsciente, sobrevivendo artificialmente graças aos aparelhos hospitalares, e apenas graças a eles. O que seriam os aparelhos? Os prêmios oficiais, as edições patrocinadas pelas secretarias de cultura, as compras do governo para as escolas e bibliotecas públicas, e outras ações semelhantes. Todas artificiais, porque não pertencem ao horizonte de escolhas do grande público. [...]”
“[...] Naquela altura, o meu editor já estava preso havia quase três anos. Tinha sido apanhado em flagrante a recusar o livro de um jovem escritor, dizendo-lhe sabe como é, as pessoas já leem pouco, quanto mais um autor novo de quem nunca ouviram falar. [...] No princípio foi muito difícil. Os editores e os pedófilos são os mais maltratados nas prisões. Embora ele nunca me tenha dito, suponho que o tenham violado.”[3]
“[...] Quinhentos e tantos anos de imprensa caçaram, capturaram e aprisionaram o conhecimento do mundo em pequenas jaulas de papel e tinta.
As grandes livrarias, os grandes sebos, as grandes bibliotecas, são um tipo estranho e maravilhoso de zoológico.”
Sim. Gostei do livro por seu conteúdo, sua qualidade estética e até por seu formato de bolso, perfeito para espantar (ou acomodar) fantasmas existencialistas que também me rondam em filas de banco. Mas preciso confessar que senti falta da boa e velha listinha de referências bibliográficas ao final. Sei lá por quê... Vício? Condicionamento, talvez. Eram tantas ideias, obras e comentários que me deu um trabalhão ficar procurando tudo página a página, cada vez que me lembrava de um trecho. É um sintoma de que eu também tenho minhas raízes fincadas na Tradição. Será mesmo que todos a temos, como diz Bourdieu, como reverência ou como oposição? Bourdieu também fala que “o anacronismo está inscrito na atitude tradicional com respeito à cultura: o letrado tradicional vive sua cultura como viva e se percebe como contemporâneo de todos os seus predecessores.” Lembrei-me deste discurso ao constatar a “erudição descolada” de Luiz Bras. É apenas uma nota, um assunto engasgado, por enquanto, mas sobre o qual ainda pretendo escrever.

Cada cabeça é um mundo... e cada mundo, só uma cabeça?
O certo é que este livro me chegou como uma janela aberta a ventilar ideias e referenciais.  Foi bom ver um discurso coerente e bem estruturado, expondo os preconceitos em relação a alguns tipos de literatura. Foi enriquecedor me reconhecer cometendo vários erros... No livro há, por exemplo, uma argumentação consistente sobre os diferentes critérios de qualidade que norteiam a ficção científica, relegados pela crítica de um modo geral. Mais do que isso: há várias indicações de como o diálogo poderia ser mais produtivo, não fossem as fagulhas trocadas entre escritores e leitores de diferentes campos.  
De fato, ao ler Luiz Bras, vejo uma literatura que resgata (ou revigora) a leitura e a produção de livros como uma atitude política. “Quando você, eu, todos os leitores e todos os críticos dizemos ‘este livro é excelente’, na verdade estamos dizendo ‘este livro legitima o tipo de mundo no qual eu quero viver’. Então,  falar bem do livro em questão, promovê-lo, fazer com que seja lido por muita gente e passe a integrar o cânone literário, tudo isso se torna uma missão política. [...]”
Enfim, esta é mais uma leitura que por necessidade e por prazer vim aqui compartilhar.



[1] BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.144.
[2] BRAS, Luiz. Muitas peles. São Paulo: Terracota, 2011.
[3] Trecho do romance Uma casa na escuridão, do escritor português José Luís Peixoto, citado por Bras.