Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Moacyr Scliar, mon frère


 “De todas as invenções nenhuma é mais sublime do que aquela que nos permite comunicar nossos mais íntimos pensamentos a outra pessoa, e não importa quão distante esteja em termos de tempo ou de lugar, e pela simples disposição, no papel, de duas dezenas de pequenos sinais. É o ápice da criatividade humana.” (Galileu Galilei)






Justamente em 27 de fevereiro, data de falecimento de Moacyr Scliar, eu estava relendo seu texto “O valor simbólico da leitura”, capítulo primeiro do livro Retratos da leitura no Brasil, organizado por Galeno Amorim. Por isso, de lá extraí esta citação de Galileu Galilei, e outras referências que me motivaram a escrever em sua homenagem.
No rádio, ouvi a declaração de Luís Fernando Veríssimo, acerca do engajamento do escritor, sempre envolvido com questões sociais relativas à saúde pública e ao desenvolvimento da leitura em nosso país.  Especialmente em sua reflexão sobre os dados da pesquisa do Instituto Pró-livro, o que se percebe é a ênfase na amplitude e valorização do conceito de “leitura” que não deve se restringir à decodificação do texto escrito, mas ao estabelecimento de relações com o mundo por meio do poder simbólico inserido em cada ideia, cada imagem e cada palavra.
Desta vez tive a impressão de que ao trazer a origem grega da palavra “símbolo” (syn = junto, bolon = arremessar), de alguma maneira, ele toca em uma das grandes feridas que dificultam a real apropriação da habilidade de leitura: o recente engodo conceitual embutido no senso comum de que há um significado “certo”, “seguro” e outros que provavelmente estão “errados”.  Tudo isso me fez lembrar uma velha lição aprendida na escola, na qual a professora dava a entender que o sentido denotativo de cada palavra era “mais pesado” que qualquer conotação singular. Lembro-me de num primeiro momento ter entendido que o sentido figurado das coisas aparecia “somente na poesia”. E Deus sabe como foi difícil abrir espaço mental para que os singelos exemplos dos exercícios fossem sistematicamente divididos entre denotativos e conotativos.
Lembrar dessas experiências aparentemente bobas é escavar a beleza de outras partes daquele mesmo texto de Scliar: “unidos por símbolos nós, humanos, nos arremessamos juntos nesta aventura que é a vida. Juntos, não separados; esse caráter de união que o símbolo proporciona é uma coisa importante e contrasta, como já veremos, com outras conotações que a escrita pode ter.”
Acompanhar seu breve discurso sobre as relações entre escrita, leitura e poder é tão prazeroso e enriquecedor quanto ler qualquer um de seus textos de ficção. Em particular, correlaciono esta reflexão à “Orelha de Van Gogh”, mencionada em um conto como memória de infância. Um elemento que de repente nos faz perceber o quanto crescemos a cada dia, sem volta. Aliás, vale destacar a eficiência do recurso às suas memórias pessoais, reconstruindo ao leitor seu contexto familiar – onde a mãe, por exemplo, dizia-lhe diante da livraria “na nossa casa não pode faltar livros, compra o quanto quiseres”.  
Seus relatos são conscientes de que “o acesso ao texto é para quem pode: quem pode frequentar colégio, quem pode comprar livros, quem tem tempo para ler (...)” – isso nos desanima ao acionar tantas pendências na área da Educação – mas tem o lado positivo de valorizar o que ele vivenciou: “o livro como porta de entrada de um mundo melhor”.  É com a proposta de apresentar a leitura como um “convite amável, não como uma tarefa ou obrigação” que ele conclui o texto enunciando o maior risco ao qual estamos de fato expostos “solapar o simbolismo da leitura”. 
Para terminar, relembro também uma de suas imagens literárias que me ajudaram a compreender a singularidade da resistência judaica, com toda sua carga histórica de diásporas, enfrentamentos e perseguições: a imagem do velho judeu, tocando a vida com tranquilidade, fazendo o que for necessário fazer, mas sempre com uma mala pronta, caso a necessidade de partir se coloque.  Hoje, pela manhã, mais uma vez me lembrei dele. Mas também me lembrei de sua referência a Baudelaire, que considerava o leitor “mon semblabe, mon frère” e a Edna St. Vincent Milay com o trecho “Read me, do not let me die”.  O próprio Scliar disse: “há vida, no texto, a vida que o autor, sobretudo o poeta ou o ficcionista, ali depositou.” Que haja sempre mais vida e que os novos olhos compreendam o que significa “estarem abertos” para vê-la.

Retratos da Leitura no Brasil/Org. Galeno Amorim – São Paulo: Imprensa Oficial: Instituto Pró-livro, 2008. 

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Nasce um Leitor




Há algum tempo comentei o quanto as palavras de Manguel me marcaram: “o livro não precisa do leitor para existir”. Sempre entendo o livro como um texto, de maneira geral, e acho que por isso, de um tempo para cá, quando me convidam a ser “leitora” me sinto ainda mais comovida. Será que alguém entende o que estou dizendo?
A atitude de reconhecer-se escritor ou leitor de alguém em especial, a meu ver, é um evento que merece mais atenção nessa era de semi-anonimato de milhões de blogueiros em todo o mundo.
Mesmo sabendo-me “supérflua” para a existência de qualquer texto, continuo adorando aquela impressão de que algo foi escrito especialmente para mim.  Imaginem, então, qual não foi minha alegria quando um jovem amigo me escolheu para leitora de seu texto “recém-nascido” – e como foi bom reencontrar tantas ideias que vivem por aí, na corrente de nossas afinidades e reflexões.
Felipe Caldas, como todo bom educador, é um leitor sensível. É também um dos amigos com quem vivo trocando dicas de cinema e insights sobre literatura.
Várias vezes o convidei a registrar seus pensamentos e impressões, mas confesso que a resistência do menino (ou pelo menos sua procrastinação) em alguns momentos abalou-me as esperanças... Por isso, mais do que nunca, fiquei feliz quando ele me procurou para compartilhar seu encontro com  Hilda Hilst. É bom perceber em suas palavras esse tom de “porta aberta”: sempre há espaço para saber mais. 

Descobrindo Hilda   (por Felipe Caldas)

Recentemente resolvi pesquisar um pouco sobre a chamada literatura erótica, por interesse pessoal e para um possível trabalho da faculdade. A primeira dificuldade (ainda não superada, como verão adiante) foi delimitar o erótico, o pornográfico e por que não o grotesco?         
Pois é, ainda não sei dizer. Além do mais, por enquanto isso não é de fundamental importância. O que interessa aqui é Hilda Hilst, pois uni a vontade de conhecer mais sobre a obra da escritora à necessidade em conhecer melhor os gêneros (?).
Depois de fazer aquelas breves pesquisas e rezas a “Nossa Senhora do Google” encontrei muitas informações que consideram a escritora, como autora de livros eróticos e pornográficos, ou ainda grotescos.
O que tenho a declarar é: “não sei se gostei, mas achei no mínimo intrigante”.
As minhas impressões nesse primeiro contato com algumas obras de Hilda, através dos livros Do Desejo, Bufólicas e Cartas a Um Sedutor (2008,Editora Globo), é possível transitar entre as três classificações.
Em Do Desejo, nos deparamos com poemas que expõem diferentes formas de se relacionar com o desejo, presente de forma ampla, desde as relações sexuais à companhia hilária e fiel de uma boa bebida, como no poema intitulado Alcoólicas, publicado originalmente em 1990 e reeditado em 2008, reunido a outros livros da autora.
Já em Bufólicas, nos deparamos com sete personagens tradicionais de contos de fadas que, satirizados, adquirem “anomalias sexuais”. Os textos destacam o tamanho, a aparência, entre outros aspectos dos órgãos e atos sexuais.
Cartas de um Sedutor é um livro que eu diria “múltiplo”. Nele está a narrativa de Stamatius e Eulália, um casal de mendigos que vivem em condições deploráveis, no entanto, fazem do desejo que sentem um pelo outro, quase que a principal fonte da relação e da continuação da vida à dois.
Stamatius é um escritor que renegou a classe média após ter sua produção literária recusada pelos meios editoriais – recusa esta que se justifica, do ponto de vista mercadológico, porque os livros eram desinteressantes e “escrachados demais”. A obsessão sexual que ele e Eulália sofrem, serve muitas vezes, de inspiração para muitas das narrativas criadas por Stamatius, entre elas, a troca de correspondências entre dois irmãos que, quando mais novos, mantinham uma relação incestuosa, ou ainda, os contos trágicos que o autor de Hilda cria a partir de falas de Eulália, sugerindo temas para o marido ou chamando-o para se deitarem (na obra, as definições vão muito além destas...).
É claro que os três livros citados representam e abordam muito mais do que abordei aqui, seja pela riqueza de termos utilizados para tratar as relações e órgãos sexuais ou pela rica estratégia de construir vozes poéticas e personagens cultos que referenciam escritores e pensadores da literatura mundial (Foucault, Sartre, Blake, Woolf, Kafka, Hemingway, entre outros), fazendo deste intelectualismo um atrativo sensual.    
 A sexualidade presente nos textos de Hilda Hilst, sem dúvida alguma, transmitem estranhas sensações, transitando, entre a excitação, o estranhamento e, sobretudo, a rejeição devido ao excesso e à crueza com a qual o tema é tratado.
Reafirmo o que escrevi no começo deste texto: “não sei se gostei!”, se gostei, ainda não descobri exatamente do quê, mas vale conferir. Por enquanto “(...) eu paro aqui. No oco das astúcias”.

 * Imagem: "Abraço", de Egon Schiele.