Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sopros e entrelinhas

“Nada se parece mais com uma casa em ruínas do que uma casa em construção.”
Jean Cocteau

 


São fios, redes, nós, laços e embaraços. O que é arte? O que é fazer arte? Até que ponto a arte se instaura como espaço de mistificação, sacralidade, hermetismo? Até que ponto uma obra de arte pode despertar questionamentos ou atitudes no público? Até que ponto cabe ao autor delinear os limites desta relação?
Ao observar a instalação Sopros, realizada por Nair Kremer, na Praça Buenos Aires, é possível que muitos estranhem um intermitente emaranhado disforme. De fato, o resultado ao final de cada tarde destoa das linhas poéticas que compõem a exposição Oxigênio 3. No entanto, é justamente nesta diferença que se pode mais uma vez encontrar a mescla da artista e da arte-educadora. A liberdade, a interação e o estímulo à autonomia são fundamentos de sua proposta de educação pela arte (ou arte como educação). Ideais concretizados, tanto em projetos sócio-culturais na periferia paulistana, quanto nas atitudes cotidianas de mãe, amiga, e avó. Onde Nair está, há sempre algum burburinho, algum sinal de movimento. Estas referências, quando colocadas no contexto de uma intervenção de arte contemporânea no espaço público, tornam-se um diferencial, uma identidade e uma espécie de estopim. Sim. Os trabalhos de Nair costumam ter um caráter deflagrador. Seja no campo das ações, seja no campo das reflexões.
Por exemplo, algo que esta nova instalação trouxe à tona, diz respeito ao modo como geralmente se lê a noção de “liberdade”. Este é um daqueles trabalhos em que o artista não tem “controle absoluto” sobre a obra. E, nesse caso, acolher o “acaso” e até o “caos” faz parte do processo. Mas note-se que este gesto de acolhimento e generosidade diante das atitudes do público coautor é apenas uma das etapas. O trabalho não se limita a acolher o que vier. Ele está inscrito em um contexto específico que merece atenção. É importante lembrar que no ano anterior, no mesmo local, a instalação Um poço fitando o céu desencadeou uma série de processos criativos, não somente na artista, como nos frequentadores da praça, tecendo uma rede, também repleta de intervenções e performances não planejadas.
Note-se que os armários e gavetas que há alguns anos são sinônimos de abertura, interação e ressignificação, dessa vez são eles mesmos deslocados para novos sentidos. O que antes era um movimento que partia do mergulho ao interior representado nas gavetas (e no “poço” de Fernando Pessoa), agora se propaga das gavetas em direção ao espaço externo. É dali que partem os fios, as redes, as matérias e as inspirações... Da mesma forma, se nas instalações anteriores a ação do público se dava no interior das gavetas, com objetos recombinados a cada manuseio, desta vez, a liberdade se expressa, inclusive, esvaziando-as. Expondo vínculos, conflitos e rupturas, numa rede ou emaranhado que se estende em várias direções. O que mais isso tudo nos diz?
Aos que reconhecem na arte um discurso sobre o fazer, cabe pontuar o bom hábito que a artista tem de documentar os seus processos. Sim, pois investigar passos e detalhes deste “evento instalação” pode ser uma experiência reveladora de pontos nem sempre notados na visita ao local.  É somente na documentação, por exemplo, que se vê como as primeiras linhas e redes, amarradas pela artista às árvores e galhos, traziam uma proposta estética apolínea, comedida – por sinal, coerente com a poética visual estabelecida no espaço todo. É na relação com o público que a visualidade se transfigura. As imagens trazem o envolvimento afetivo e “provocativo” dos participantes. Cabe perguntar, então, até que ponto esta instalação, ao destoar dos outros trabalhos, não trouxe à tona um uso do parque como um ambiente sacralizado – um “cubo verde”, embutindo o “cubo branco”?

Por certo, outras linhas interpretativas podem ter surgido. É possível que, para alguns, haja no resultado da instalação Sopros uma visualidade que remete a outras cenas urbanas: os emaranhados dos fios elétricos, os desarranjos amontoados de pessoas que vivem, moram e morrem “atrapalhando” as ruas da cidade... O caos, nem sempre lembra coisas “bonitas” e essa é uma leitura real que não deve ser descartada. Mais que isso, este tipo de referência nos faz lembrar que a legibilidade de uma obra não depende só da matéria em si. Ela é uma relação complexa na qual, entre os fatores de maior relevância, estão os repertórios compartilhados entre o autor e o público. E o que pensar quando a autoria se dilui em uma rede? E se o público se insere na coautoria? Como rastrear tais referências e intenções? Que fio de Ariadne pode servir ao observador?
São muitas as questões despertadas – e às vezes respondidas – pela documentação do processo. As fotografias feitas pela artista são registro de seu olhar acolhedor sobre cada gesto. Não é de admirar que amanhã ou depois estes focos se desdobrem em outras obras, pois, a rede construída a cada dia inspira e expira. O conjunto se dilata e se contrai num movimento vivo entre as árvores. E não há dúvida de que desperta inspirações.
Que importa a efemeridade dos laços e nós dados pelos passantes? Nem sempre o tempo que passa diminui a importância do instante, da atitude e da colaboração de cada um. Muitos se reencontravam nas imagens do ano passado afixadas nos arquivos. Em tempos de redes virtuais que dissimulam constância e permanência dos laços, quem é capaz de medir a resistência dos “nós” colocados em cada participação?

A arte de Nair e sua maneira de educar têm, de fato, objetivos em comum: desencadear processos individuais, trazer aos olhos as instâncias da autonomia. Um dos caminhos é propiciar a experiência. Outro, é despertar ruminações, perguntas e outras criações.
* Fotos: André Rosso, Germania e Rogério Nakagoa.

domingo, 18 de setembro de 2011

Mundos e referências

Leis da Integridade Criativa 
1ª lei: Escrever apenas o que me dá prazer escrever.
2ª lei: Escrever textos com alta densidade poética, exceto quando isso contrariar a primeira lei.
3ª lei: Agradar o maior número possível de leitores, desde que tal desejo não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei. 
(Luiz Bras)


Segundo Pierre Bourdieu[1], “a cultura letrada, erudita, define-se pela referência; ela consiste no permanente jogo de referências que dizem respeito mutuamente umas às outras; ela não é nada mais do que esse universo de referências que são indissoluvelmente diferenças e reverências, distanciamentos e atenções.” Então, vale abrir espaço para a dúvida: o que me leva a escrever é esta eventual dinâmica em que estou imersa, ou, antes, fui seduzida pelas três bem humoradas leis de Luiz Bras[2]. Na verdade muitos elementos me motivaram a registrar o evento que foi, para mim, a leitura de seu livro.
Este autor, que assina também a coluna Ruído Branco, no jornal Rascunho, traz neste pequeno volume muitas vozes e olhares sobre a literatura contemporânea. Um discurso crítico renovado, elegante e inteligente. Algo que pelo menos me garantiu nesta pseudo-resenha o cumprimento da primeira de suas leis.

Mudar é mudar em todas as direções
Literatura, ficção, ética, ciência... São tantos os assuntos entrelaçados que até fica difícil eleger um ou dois tópicos para apresentar o livro. Talvez pelo rumo de minha própria prosa neste blog, os mais marcantes sejam os textos “Fim do papel, fim da poesia” e “o autor e o seu editor”. Porém, não somente nestes, reflexões sobre as novas mídias, mercado editorial e o perpétuo medo da mudança se desenrolam com imagens e citações extraordinárias:
“[...] Agora podemos ver a poesia na UTI, inconsciente, sobrevivendo artificialmente graças aos aparelhos hospitalares, e apenas graças a eles. O que seriam os aparelhos? Os prêmios oficiais, as edições patrocinadas pelas secretarias de cultura, as compras do governo para as escolas e bibliotecas públicas, e outras ações semelhantes. Todas artificiais, porque não pertencem ao horizonte de escolhas do grande público. [...]”
“[...] Naquela altura, o meu editor já estava preso havia quase três anos. Tinha sido apanhado em flagrante a recusar o livro de um jovem escritor, dizendo-lhe sabe como é, as pessoas já leem pouco, quanto mais um autor novo de quem nunca ouviram falar. [...] No princípio foi muito difícil. Os editores e os pedófilos são os mais maltratados nas prisões. Embora ele nunca me tenha dito, suponho que o tenham violado.”[3]
“[...] Quinhentos e tantos anos de imprensa caçaram, capturaram e aprisionaram o conhecimento do mundo em pequenas jaulas de papel e tinta.
As grandes livrarias, os grandes sebos, as grandes bibliotecas, são um tipo estranho e maravilhoso de zoológico.”
Sim. Gostei do livro por seu conteúdo, sua qualidade estética e até por seu formato de bolso, perfeito para espantar (ou acomodar) fantasmas existencialistas que também me rondam em filas de banco. Mas preciso confessar que senti falta da boa e velha listinha de referências bibliográficas ao final. Sei lá por quê... Vício? Condicionamento, talvez. Eram tantas ideias, obras e comentários que me deu um trabalhão ficar procurando tudo página a página, cada vez que me lembrava de um trecho. É um sintoma de que eu também tenho minhas raízes fincadas na Tradição. Será mesmo que todos a temos, como diz Bourdieu, como reverência ou como oposição? Bourdieu também fala que “o anacronismo está inscrito na atitude tradicional com respeito à cultura: o letrado tradicional vive sua cultura como viva e se percebe como contemporâneo de todos os seus predecessores.” Lembrei-me deste discurso ao constatar a “erudição descolada” de Luiz Bras. É apenas uma nota, um assunto engasgado, por enquanto, mas sobre o qual ainda pretendo escrever.

Cada cabeça é um mundo... e cada mundo, só uma cabeça?
O certo é que este livro me chegou como uma janela aberta a ventilar ideias e referenciais.  Foi bom ver um discurso coerente e bem estruturado, expondo os preconceitos em relação a alguns tipos de literatura. Foi enriquecedor me reconhecer cometendo vários erros... No livro há, por exemplo, uma argumentação consistente sobre os diferentes critérios de qualidade que norteiam a ficção científica, relegados pela crítica de um modo geral. Mais do que isso: há várias indicações de como o diálogo poderia ser mais produtivo, não fossem as fagulhas trocadas entre escritores e leitores de diferentes campos.  
De fato, ao ler Luiz Bras, vejo uma literatura que resgata (ou revigora) a leitura e a produção de livros como uma atitude política. “Quando você, eu, todos os leitores e todos os críticos dizemos ‘este livro é excelente’, na verdade estamos dizendo ‘este livro legitima o tipo de mundo no qual eu quero viver’. Então,  falar bem do livro em questão, promovê-lo, fazer com que seja lido por muita gente e passe a integrar o cânone literário, tudo isso se torna uma missão política. [...]”
Enfim, esta é mais uma leitura que por necessidade e por prazer vim aqui compartilhar.



[1] BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.144.
[2] BRAS, Luiz. Muitas peles. São Paulo: Terracota, 2011.
[3] Trecho do romance Uma casa na escuridão, do escritor português José Luís Peixoto, citado por Bras.