Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Cultura Letrada - literatura e leitura



“Ler um livro é cotejá-lo com nossas convicções sobre tendências literárias, sobre paradigmas estéticos e sobre valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas relações políticas etc.). É contrastá-lo com nossas ideias sobre ética, política e moral. É verificar o quanto ele se aproxima da imagem que fazemos do que seja literatura.” (Márcia Abreu)



A leitura e os limites dos livros


Pensei em deixar somente a citação acima como um aperitivo do trabalho de Márcia Abreu acerca da Cultura Letrada. Talvez fosse bom acrescentar a pergunta: ”como uma tribo africana interpretaria Hamlet?” Mas, como muitos dos meus amigos já sabem, eu não consigo simplesmente indicar o livro sem comentar sua contribuição em minhas pesquisas recentes sobre a Leitura.
Clareza de seu discurso, reflexões sempre fundamentadas em fatos e exercícios convidativos já seriam argumentos suficientes. Mas foi a ousadia com que Márcia Abreu nos coloca diante do espelho, o principal motivo de minha surpresa e admiração.  A atitude de desmistificar a “imanente literariedade” tantas vezes martelada por críticos e professores é fundamental para compreender os empecilhos que afastam livros e leitores – sejam estes adultos, jovens ou crianças em fase escolar.  

Um resgate do espanto e da atitude investigadora na leitura
O texto parte de questões como “haverá livros bons em si?” ou “a beleza está nos olhos de quem os lê?” E, para investigar isso, a pesquisadora apresenta uma análise, bastante prática, de uma lista dos “melhores livros”, segundo um júri selecionado pela Folha de S. Paulo. Ao comparar os resultados com a lista de “melhores escritores do século XX”, eleitos pela revista IstoÉ, o simples contraste já denota o quanto é subjetiva cada recomendação. Márcia comenta elementos e critérios do júri e como estes critérios levam em conta aspectos políticos, sociais e culturais.
O texto me fez lembrar a fala com que o professor João Adolfo Hansen concluía algumas de suas aulas instigantes: “infelizmente, nem sempre o óbvio é evidente...” De fato, nada do que a autora expõe chega a ser novidade. Há escritos remotos com reflexões sobre o contexto no ato da leitura. Porém, tenho a impressão de que para boa parte dos estudantes de Letras, qualquer questionamento de princípios e valores aprendidos pode soar como heresia. Mesmo assim, a autora nos mostra que todos os esforços no sentido de enaltecer a literatura “como se fosse algo universal (...) próprio do ser humano” podem ser desastrosos, principalmente se, nisso, nos esquecermos de “discutir o que é literatura (...)” e reconhecê-la como “um fenômeno cultural e histórico, passível de receber diferentes definições conforme a época e o grupo social.” Portanto, “não há literariedade intrínseca, nem critérios atemporais”. É óbvio, mas não é preciso muito para notar que não é evidente...

Conceitos e preconceitos
Entre outros aspectos do livro, mais uma vez encontro comentários acerca das “instâncias de legitimação” que podem ou não reconhecer o trabalho de um escritor, como diz Fábio Lucas, em Crepúsculo dos Símbolos – reflexões sobre a história do livro no Brasil. Desta vez, para ilustrar suas  observações, Márcia Abreu retoma acontecimentos que já foram divulgados na imprensa e em obras de referência, mas que na correria cotidiana, são conhecidos e esquecidos com a mesma rapidez. Por exemplo, ela retoma uma experiência feita em 1999, quando a Folha de S. Paulo enviou um texto de Machado de Assis a grandes editoras, sujeitando-o à avaliação sem identificar o autor.  A rejeição geral foi uma polêmica discutida na ocasião, mas o olhar de Márcia Abreu revisita o caso a partir de outros referenciais – ressaltando que “saber que um texto é literário já provoca certo tipo de leitura.” 
As 125 páginas de análise são preciosas para quem hoje enfrenta o desafio de “formar leitores”, dentro e fora da sala de aula. Aliás, sobre isso, a autora também comenta que muitas vezes o problema fica camuflado em explicações mais fáceis como “a falência do ensino brasileiro... a ignorância que impede de perceber a excelência do texto...” Sendo que, nesta experiência com o texto de Machado, o fato de ter passado por “leitores de profissão” mostra o peso das expectativas e do conhecimento prévio sobre o autor no ato de ler.  
Acerca da relação com os best-sellers, Márcia Abreu apresenta resultados de pesquisas recentes sobre a leitura dos livros mais vendidos e, com isso, desconstrói ou pelo menos “desnaturaliza” discursos que rotulam este tipo de livro como uma “leitura alienadora”. Relatos de reflexão e transformação são mais frequentes do que os círculos eruditos se permitiriam reconhecer.  No entanto, este olhar mais aberto à obra antes de criticá-la também é raiz para a desconstrução de outro mito – o de que “a literatura, por si, torna-nos mais humanos”. Faz sentido, pois a existência de pessoas cultas participando das atrocidades em campos de concentração é apenas um dos muitos exemplos de suposições equivocadas. Como diz a autora “o fato é que há gente muito boa que nunca leu um livro e gente péssima que vive de livro na mão.”

Literatura como face viva de qualquer idioma
O livro Cultura Letrada – literatura e leitura aborda preconceitos que estão muito mais arraigados do que poderíamos supor. Passa pelas especificidades literárias do Cordel, pelo uso artístico da linguagem em ditados populares, pela noção “civilizatória” impregnada em cada imposição e, é claro, mostra o quanto a literatura – sendo, antes de tudo, uma manifestação “língua” – também se transforma no tempo e no espaço, assumindo novos valores e ideias de acordo com as necessidades locais.
Neste caso, é curioso reconhecer que muitos dos textos que eram mal vistos ou proibidos antigamente, hoje, são impostos aos leitores como modelos obrigatórios – e a partir disso, quem garante que o que é mal visto hoje, amanhã não será também um referencial? E mais! Vê-se neste livro e em outros, o quanto a atitude moralista de condenar obras e autores também é antiquada...
Para terminar, vale o registro de que em 1775, a partir de recomendações médicas do Dr. Tissot – portanto, baseadas em pesquisas científicas – havia a certeza de que “a leitura é prejudicial à saúde”. Ele não estava sozinho. Há publicações de 1795 que complementam os malefícios já advertidos – afinal, “a leitura forçava a mente a trabalhar com intensidade ao mesmo tempo que mantinha o corpo em repouso durante longos períodos”. Uma lista de sintomas, como dor de cabeça, enfraquecimento dos olhos, melancolia, insônia... não deixaram de ser “desculpas” até hoje... Mas por que então mudamos de opinião e agora, lutamos para conquistar leitores? Sim, o valor que atribuímos a leitura também mudou. Será que naquele tempo, alguém imaginaria essa mudança ousada, mesmo correndo tantos perigos?
A língua é viva e se transforma. E a literatura também é língua a ser lida e compreendida em diferentes olhares por diferentes leitores. 

*Márcia Abreu – Cultura Letrada: literatura e leitura.  Editora Unesp, 2006.