Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Crepúsculo dos símbolos*



Reflexões que perduram há mais de 20 anos


Nem tudo precisa ser definido em palavras, mas algo que não sei explicar direito pode ser compreendido por qualquer leitor: falo de um sutil “constrangimento” ao querer comentar um livro que não é nenhuma novidade no mercado. Pode ser que algumas pessoas digam “por que falar disso agora? Você está atrasada... todo o mundo já sabe disso” ou, o que é mais provável, “não é novidade, então ninguém quer saber...” Por mais ciente que eu esteja de que não há nada de mais em indicar leituras, ao dar uma olhada em outras páginas virtuais, senti que os livros já esgotados ou apenas disponíveis em sebos e bibliotecas não têm sido comentados com tanta frequência, a não ser nos casos de títulos indicados para uma prova ou pela inconveniente exigência de algum professor.
Mais uma vez deixei meus olhos passearem pelas estantes da Biblioteca Mário de Andrade e um título me chamou a atenção: Crepúsculo dos Símbolos: reflexões sobre o livro no Brasil. Trata-se de uma publicação de 1989, que exigiu de mim uma leitura pausada por subtítulos que já eram em si profundas indagações. O sumário apresenta itens como “o livro como objeto cultural”; “o livro à procura do leitor”; “o escritor e a vida intelectual”; “literatura, jornalismo e massificação”; “a crise da cultura literária no Brasil pós-64”, entre outros.
O ilustre autor, professor Fábio Lucas, tem uma vasta produção e pesquisa, tanto em literatura e crítica, quanto em outros ramos das ciências sociais, e neste trabalho reúne questionamentos que – a despeito de suas posições, hoje alteradas, ou não – continuam pertinentes no que se refere à leitura em nosso país.
As dificuldades, sobretudo, de contato com a literatura também não são novidade e, como educadora, posso afirmar que os problemas não se limitam a uma ou outra classe social. Para minha surpresa, o capítulo “O livro à procura do leitor” apresenta dados acerca de políticas de incentivo da época, que, embora provavelmente tenham evoluído bastante nos últimos anos, em diversos aspectos continuam limitadas, seja no ponto de vista comercial, seja no modo como se propicia a aproximação entre os livros e a comunidade.
De modo geral, o texto traz um retrato do complexo quadro social que obstrui o vínculo entre as pessoas que escrevem, o livro e o público. Fábio Lucas destaca mazelas econômicas e educacionais que ainda não foram resolvidas. A mais evidente é a falta de letramento – a gritante alfabetização funcional que não alcança a compreensão e interpretação dos textos. O autor indica uma série de fatores políticos e sociais que dificultam o reconhecimento da cultura escrita e a publicação das obras de novos escritores.
Há neste livro informações elaboradas sob um ponto de vista bastante polêmico, que parte de elementos como “a chegada do livro como instrumento de dominação, por meio dos jesuítas” (e, de modo mais amplo, do europeu), em contraposição à “resistência natural por parte das culturas ágrafas” – presentes entre os indígenas e africanos que formaram os alicerces da população do Brasil. Outro elemento é o fato de que até mesmo os “resíduos culturais brasileiros cultivam o não escrito”, pois não são raros os familiares que descartam anotações e correspondências de escritores por considerarem apenas fotografias e objetos como patrimônio a ser compartilhado.

As instâncias de reconhecimento e o marketing editorial
Pelo texto de Lucas, mergulhamos na reflexão sobre “escrever como trabalho”, pois aciona analogias e referenciais acerca das questões de remuneração. De fato, há ainda muita gente que enxerga com naturalidade o adiantamento financeiro para o conserto de uma máquina de lavar ou o de um encanamento, mas não admite qualquer provimento para o tempo e a estrutura de pesquisa e elaboração textual a que se empenha todo bom escritor. 
Há ainda um conjunto de considerações sobre o percurso para que o trabalho chegue a ser reconhecido como literatura. Entre muitos fatores, o texto elenca algumas dificuldades de publicação. Outros pensamentos se desdobram no espanto diante de expressões como “poetas independentes” – independentes de quê? (ou de quem?) – pergunta o autor ao comentar o peso das relações políticas e sociais nos círculos literários.
Com todos esses “entretantos”, há que se lembrar ainda de outras exigências pessoais constantemente impostas a quem escreve, principalmente, num meio em que há tanta pressão para mercantilizar a obra, nos moldes de sucesso na indústria cultural. Nesse aspecto, o autor de Crepúsculo dos Símbolos critica os best-sellers por conter uma “monotonia de recursos”, com “soluções narrativas e conteudísticas” que, embora atraiam grande público e vendagem, limitam-se a conceitos maniqueístas e “despreocupantes”. Para ele, o protagonista desse tipo de livro retrata uma busca de segurança no mundo conhecido e previsível, uma busca do absoluto que alimenta a produção de ídolos em detrimento das sutilezas do mito – infelizmente, o mesmo mito que, em sua complexidade, sobreviveria a tudo que é efêmero – inclusive, à moda e a outros processos que permeiam os interesses de mercado.
Especialmente acerca destas posições os best-sellers, encontrei um contraponto importante no livro de Márcia Abreu, Cultura Letrada – literatura e leitura (Editora Unesp, 2006), que pretendo comentar numa próxima ocasião. De qualquer forma, não posso negar a pertinência de questões colocadas por Fábio Lucas, como: “um livro é bom porque vende muito, ou, vende muito porque é bom?” Não que haja qualquer problema em vender livros – ao contrário, o próprio autor discorre sobre a necessidade de aumentar também o número de livrarias e os acervos das bibliotecas para levar o livro para mais perto do leitor. Sua crítica vai no sentido de apontar que muitos dos suplementos literários e menções a livros na mídia têm muito mais a função de marketing editorial do que de fato difundir as reflexões e o contato com o livro. Há 21 anos, portanto, o autor coloca uma questão que é válida ainda hoje: terá o livro se convertido em apenas “uma forma de consumo a mais”?
Enfim, não é minha intenção recontar o livro, mas comentar reflexões que também experimentei durante a leitura e convidar outros leitores a compartilhar suas impressões sobre essas ideias que certamente continuarão a atravessar o tempo.




Lucas, Fábio. Crepúsculo dos símbolos: reflexões sobre o livro no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 1989 (coleção literatura-crítica).