Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Do fundo da superfície



“[...] quando falamos de leitura não estamos falando de leitura, e, sim, de ‘leitura’. O trabalho por uma sociedade leitora consiste antes de tudo em desautomatizar a noção trivial de leitura, porque o que se comprova na sociedade do excesso de letras & sinais é que os que leem não leem.” Affonso Romano de Sant'Anna [1]






Aos que têm pressa, pode-se dizer que o livro Ler o mundo de Affonso Romano de Sant’Anna é uma compilação de textos apresentados em diferentes ocasiões. Alguns foram publicados em jornais e livros, outros são palestras ministradas em suas viagens de reconhecimento dos leitores e da leitura por um vasto Brasil – um cenário muito maior do que a mídia costuma mostrar.
Os relatos sobre os agentes de leitura e sobre as iniciativas locais dão fôlego aos que sensatamente persistem na indissociabilidade entre educação e cultura. Porém, não há como não se indignar com suas denúncias, nem como ignorar o peso de nossas escolhas políticas em cada um dos descalabros citados por ele. Pior é admitir que dali vemos apenas a ponta do iceberg.
A noção de leitura exposta no livro ultrapassa tecnicismos e cinismos de um país que canta índices de alfabetização, subsidiando o analfabetismo funcional e até tecnológico, pois, como bem destaca o autor, “o analfabeto é também aquele que a sociedade letrada refugou”[2].
Ao recolocar a leitura em sua autêntica condição de “tecnologia”, percebe-se no livro e nas bibliotecas o campo fundamental para que o país de fato cresça democraticamente e em todas as direções.
Como ex-diretor da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e responsável pelo Proler, Sant’Anna reúne memórias documentadas sobre o nascimento das políticas de incentivo à leitura no Brasil. Ele mostra, inclusive, em suas colunas em jornais (Estado de Minas/Correio Brasiliense) a necessidade de se pensar em ações continuadas para a formação de leitores em um sistema amplo, cujo alicerce é o tripé biblioteca-livro-leitura. Já se sabe que o ato de alfabetizar e distribuir livros não forma leitores. E a experiência consolidada no Proler, mesmo com todas as suas dificuldades, mostrou que “incrementar programas de leitura é ajudar a ler o mundo, a interpretar, a tornar as coisas menos enigmáticas.” [3]
Entre as diversas faces da leitura abordadas em Ler o mundo, talvez três tópicos sejam, para mim, mais marcantes:
1)      É preciso que o discurso de incentivo à leitura saia da visão reducionista de leitura/prazer e resgate o valor real e amplo de leitura como tecnologia/trabalho. “Insistir na leitura como prazer é prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de trabalho.”[4]
2)      Muitas vezes os maiores desafios são enfrentar e denunciar o “discurso duplo” daqueles que deveriam ser os principais aliados. O episódio lamentável que determinou a injusta demissão de Sant’Anna da presidência da FBN, e os embates para a consolidação do Sistema de Bibliotecas são exemplos do quanto a leitura hoje é assunto de resistência.
3)      “Ser ‘moderno, às vezes, é um modo de ser apenas raso e superficial.”[5] Estas palavras dão muito o que pensar. No contato com livros como este e no cotidiano de trabalho educativo descubro a cada dia graves lacunas em minha formação. Vejo colegas em situação similar. Com eles, tento conversar sobre cursos e livros, e ao mesmo tempo sinto que as fendas são mais profundas do que parecem. A falta de tempo para a introspecção é causa ou conseqüência das mudanças tecnológicas e educacionais? A tecnologia foi adaptada ao excesso de informação, ou fomos nós que, cada vez mais incapacitados a este tempo interior, nos escondemos e nos acomodamos a ela?
Mais uma vez me deparo com o fato de que todo bom livro dá ao leitor um espelho. Sei que estou sob um batente e não atravesso a porta. Vivo a olhar pela janela, em divagações que se dissolvem muitas vezes ali mesmo, naquele espaço limítrofe entre o dentro e o fora. Em tantas outras áreas engolimos as tragédias cotidianas, que na educação quase soa absurdo esperar outro resultado. Aqui também, enquanto se tenta consertar o telhado já em dia de chuva, a enxurrada corrói alicerces, abre crateras. Cada um que se vire com seus próprios recursos, sem a ilusão de que as leis terão o efeito necessário. O que se nota é que no Brasil a formação de leitores tem sido tratada como as enchentes sazonais. Não se admira que, muitas vezes, desistir ou mudar de rumo seja o tipo de decisão nascida não da vontade partir, mas da impossibilidade ficar.
Por fim, se apesar da angústia escrevo, é porque concordo com o autor quando diz que “ler e escrever são atos geminados. Quem lê está lendo a escrita do outro, que fala por ele, mas escrever é fazer falar o leitor-autor que há dentro de cada um.” [6]  
Aos que desanimam e enxergam mais obstáculos que soluções, cabe registrar nesta “também superficial” indicação de leitura um dos muitos episódios narrados neste livro. Trata-se da biblioteca hospitalar montada pelo médico dr. Ronaldo Tournel.
“Um dia ao dar alta a um paciente, este lhe pediu para adiar sua saída, porque precisava saber o fim de uma história que estava lendo ali no hospital.
O médico achou interessante o pedido, mas seu assistente chamou sua atenção comentando que aquilo não era bem assim, pois o referido doente era analfabeto. O dr. Ronaldo, então, vai ao paciente e pergunta-lhe se é analfabeto. Meio encabulado, mas firme, o doente então lhe diz uma frase capaz de matar de inveja Guimarães Rosa:
‘É, doutor, não sei ler mesmo não. Mas o paciente do leito 12 está lendo pra mim, e eu leio a leitura dele.’”[7]

[1] SANT’ANNA, Affonso Romano de. Ler o mundo. São Paulo: Global, 2011, p. 93.
[2] p. 12.  
[3] p. 213.
[4] p. 14.
[5] p. 186.
[6] p. 219.
[7] p. 219.