“[...] quando falamos de leitura não estamos falando
de leitura, e, sim, de ‘leitura’. O trabalho por uma sociedade leitora consiste
antes de tudo em desautomatizar a noção trivial de leitura, porque o que se
comprova na sociedade do excesso de letras & sinais é que os que leem não
leem.” Affonso Romano de Sant'Anna [1]
Aos que têm pressa, pode-se dizer que o livro Ler o mundo de Affonso Romano de Sant’Anna é uma compilação de textos apresentados em diferentes ocasiões. Alguns foram publicados em jornais e livros, outros são palestras ministradas em suas viagens de reconhecimento dos leitores e da leitura por um vasto Brasil – um cenário muito maior do que a mídia costuma mostrar.
Os relatos sobre os agentes de leitura e sobre as iniciativas locais dão
fôlego aos que sensatamente persistem na indissociabilidade entre educação e
cultura. Porém, não há como não se indignar com suas denúncias, nem como ignorar
o peso de nossas escolhas políticas em cada um dos descalabros citados por ele. Pior é admitir que dali vemos apenas a ponta do iceberg.
A noção de leitura exposta no livro ultrapassa tecnicismos e cinismos de
um país que canta índices de alfabetização, subsidiando o analfabetismo
funcional e até tecnológico, pois, como bem destaca o autor, “o analfabeto é
também aquele que a sociedade letrada refugou”[2].
Ao recolocar a leitura em sua autêntica condição de “tecnologia”, percebe-se
no livro e nas bibliotecas o campo fundamental para que o país de fato cresça
democraticamente e em todas as direções.
Como ex-diretor da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e responsável pelo
Proler, Sant’Anna reúne memórias documentadas sobre o nascimento das políticas
de incentivo à leitura no Brasil. Ele mostra, inclusive, em suas colunas em jornais
(Estado de Minas/Correio Brasiliense) a necessidade de se pensar em ações continuadas
para a formação de leitores em um sistema amplo, cujo alicerce é o tripé biblioteca-livro-leitura.
Já se sabe que o ato de alfabetizar e distribuir livros não forma leitores. E a
experiência consolidada no Proler, mesmo com todas as suas dificuldades,
mostrou que “incrementar programas de leitura é ajudar a ler o mundo, a
interpretar, a tornar as coisas menos enigmáticas.” [3]
Entre as diversas faces da leitura abordadas em Ler o mundo, talvez três tópicos sejam, para mim, mais marcantes:
1)
É preciso que o discurso de incentivo à
leitura saia da visão reducionista de leitura/prazer e resgate o valor real e
amplo de leitura como tecnologia/trabalho. “Insistir na leitura como prazer é
prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de
trabalho.”[4]
2)
Muitas vezes os maiores desafios são enfrentar
e denunciar o “discurso duplo” daqueles que deveriam ser os principais aliados.
O episódio lamentável que determinou a injusta demissão de Sant’Anna da
presidência da FBN, e os embates para a consolidação do Sistema de Bibliotecas são
exemplos do quanto a leitura hoje é assunto de resistência.
3)
“Ser ‘moderno, às vezes, é um modo de ser
apenas raso e superficial.”[5]
Estas palavras dão muito o que pensar. No contato com livros como este e no
cotidiano de trabalho educativo descubro a cada dia graves lacunas em minha
formação. Vejo colegas em situação similar. Com eles, tento conversar sobre
cursos e livros, e ao mesmo tempo sinto que as fendas são mais profundas do que
parecem. A falta de tempo para a introspecção é causa ou conseqüência das mudanças
tecnológicas e educacionais? A tecnologia foi adaptada ao excesso de informação,
ou fomos nós que, cada vez mais incapacitados a este tempo interior, nos
escondemos e nos acomodamos a ela?
Mais uma vez me deparo com o fato de que todo bom livro dá ao leitor um
espelho. Sei que estou sob um batente e não atravesso a porta. Vivo a olhar
pela janela, em divagações que se dissolvem muitas vezes ali mesmo, naquele
espaço limítrofe entre o dentro e o fora. Em tantas outras áreas engolimos as
tragédias cotidianas, que na educação quase soa absurdo esperar outro
resultado. Aqui também, enquanto se tenta consertar o telhado já em dia de chuva,
a enxurrada corrói alicerces, abre crateras. Cada um que se vire com seus
próprios recursos, sem a ilusão de que as leis terão o efeito necessário. O que
se nota é que no Brasil a formação de leitores tem sido tratada como as
enchentes sazonais. Não se admira que, muitas vezes, desistir ou mudar de rumo
seja o tipo de decisão nascida não da vontade partir, mas da impossibilidade ficar.
Por fim, se apesar da angústia escrevo, é porque concordo com o autor
quando diz que “ler e escrever são atos geminados. Quem lê está lendo a escrita
do outro, que fala por ele, mas escrever é fazer falar o leitor-autor que há
dentro de cada um.” [6]
Aos que desanimam e enxergam mais obstáculos que soluções, cabe
registrar nesta “também superficial” indicação de leitura um dos muitos episódios
narrados neste livro. Trata-se da biblioteca hospitalar montada pelo médico dr.
Ronaldo Tournel.
“Um dia ao dar alta a um paciente, este lhe pediu para adiar sua saída,
porque precisava saber o fim de uma história que estava lendo ali no hospital.
O médico achou interessante o pedido, mas seu assistente chamou sua
atenção comentando que aquilo não era bem assim, pois o referido doente era
analfabeto. O dr. Ronaldo, então, vai ao paciente e pergunta-lhe se é
analfabeto. Meio encabulado, mas firme, o doente então lhe diz uma frase capaz
de matar de inveja Guimarães Rosa:
‘É, doutor, não sei ler mesmo não. Mas o paciente do leito 12 está lendo
pra mim, e eu leio a leitura dele.’”[7]