Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ler, notar, anotar e escrever



“Você nunca termina um livro, você o abandona.” 
Oscar Wilde








Alguém disse que “escrevemos para preencher as lacunas dos livros que lemos”. Machado de Assis, em Dom Casmurro[1], não poupa advertências: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos [...].” Ele nos mostra a participação ativa inerente ao ato de ler.  De fato, são infinitos os pensamentos despertáveis por qualquer palavra.
Um dia desses, eu estava conversando com uma amiga socióloga, uma moça sempre muito atenta e reflexiva, aquele tipo de pessoa que sabe desdobrar qualquer detalhe em descoberta, em questionamento e em diálogo rico e instrutivo.
Acontece que apesar de ser uma pesquisadora voraz, minha amiga alimenta uma cautela que posso chamar de “aflitiva”, pois ela adia o momento de registrar seu olhar sobre o mundo e o faz sob o eterno argumento de que precisa ler mais, assegurar-se das linhas de análise sobre isso ou aquilo... Será? É preciso mesmo estar pronta para um livro completo? O pior é que a cada leitura ela também se aflige com novas dúvidas e levantamentos bibliográficos, em uma autocobrança que a mantém no ciclo de procrastinação.
Resolvi registrar este caso porque ele me intriga, me aflige e me comove. Não somente porque desejo ser sua leitora e registrar de maneira mais eficiente as nossas deliciosas conversas sobre língua e cultura, mas, principalmente, porque me reconheço num processo muito parecido e, ao olhar de fora, redimensiono valores e atitudes.
Daqui, como uma espécie de “leitora-órfã”, sei intimamente que o adiamento desse livro pode ser um prejuízo doloroso, um erro com certeza muito mais grave do que o risco da suposta inconsistência bibliográfica ou mesmo de uma futura mudança de olhar.
Aliás, que atire a primeira pedra aquele que tem a garantia de que nunca vai mudar! Até os mortos mudam. Quantos e quantos autores foram lidos de maneiras tão diversas, a ponto de seus supostos erros, lacunas e acertos serem vistos como vanguarda, estímulo e até mesmo previsão!
As palavras de Leandro Konder[2] que introduziram tantos alunos à Dialética como “Filosofia da mudança” de alguma maneira tomam parte em minha inquietação.  Talvez porque o impasse se dê justamente na raiz... É difícil reconhecer e administrar aquilo que Konder destaca como “uma as características essenciais da dialética”: o espírito crítico e autocrítico. Fico pensando se não seria o caso de tomar coragem e adotar o método do escritor E. L. DoctorowEle diz que “escrever um romance é como dirigir à noite. Você só consegue enxergar até onde os faróis iluminam, mas você pode completar a viagem dessa maneira.” O mais importante é aceitar o convite à jornada. Mesmo porque reparei que quando estou com pessoas como minha amiga, em nossa conversa passeiam discretos e ilustres autores que só conhecemos por meio de livros. Muitos deles escritos a duras penas, quem sabe se salvos do anonimato absoluto pela boa vontade de alguém que se arriscou a traduzir ou editar um texto – agentes que neste percurso assumiram cada um a seu tempo o papel de leitor. O que seria de nós se eles não tivessem arriscado...
Não escrevo somente para cutucar minha amiga e convencê-la a investir na escrita. Este também é o canal que eu encontrei para pensar por escrito – compartilhar um pouco do que venho ruminando há algum tempo sobre esse complexo ato que é “ler”.
Especialmente neste episódio, ao perceber lacunas abissais entre as ideias anotadas, a inevitável relação entre leitura e escrita chegou a mim de maneira muito mais concreta e ampla. Lembrei-me da observação do professor Ezequiel Theodoro da Silva na qual, citando Gusdorf, ressalta: “o homem deixou de ser somente o homem que fala e se tornou o ser que escreve e que lê (...)”. [3] E isso remete-me também à ênfase que autores  como Affonso Romano de Sant’anna[4] e Eni Orlandi[5] dão à leitura como trabalho e tecnologia – ação pela qual o homem interfere na natureza e por  isso mesmo continuamente se transforma. Lembremos de que a própria tecnologia da escrita teve seus primórdios na função contábil e deu um salto quando alguém, além de registrar quantidades, resolveu narrar e comentar histórias.
Em nosso cotidiano, quando eu e minha amiga “tagarelamos” sobre projetos em nosso trabalho, o fazemos muitas vezes a partir de nossos rabiscos e anotações. Muitas vezes são palavras soltas que aos outros colegas podem parecer tópicos completamente dispersos. Mas nós acumulamos ideias, discursos e olhares que são resultado de nossos caminhos diversos e dinâmicos. Trilhas abertas, que possivelmente nos conduzirão a outros caminhos amanhã.
Foi ao ouvir comentários como “mas eu estou anotando, para um dia, quem sabe...” e ao olhar meus inúmeros cadernos que percebi: ler é notar, compreender...  mas é preciso emancipar aquelas preciosas palavras soltas.
É uma atitude relevante permitir-se ir de uma breve anotação ao exercício da reflexão escrita. Um direito tantas vezes reivindicado, um dever tantas vezes negligenciado... O que se ganha omitindo? Se alguém disser que ganha sossego, segurança, tempo... é porque de fato não tem nada a dizer, pois somente para esse tipo de pessoa o tempo corrido em silêncio aparenta ser um amigo. Não se percebe qualquer conflito. As coisas passam e pronto.
Mas aos outros, os termos notar, anotar e escrever estão hierarquizados. E enquanto não se chega pelo menos ao primeiro esboço, o pensamento se inquieta com todo tipo de divagação.  Mesmo depois de algo escrito, claro, as crises continuam, mas os embates se dão em outro patamar. É como está no Eclesiastes (12, 12): “fazer livros é um trabalho sem fim.
No entanto, por mais que a pesquisa seja repleta de referências cuidadosamente registradas em “notas”, é no escrever – permitir-se a própria voz – que o conhecimento se produz. É sempre o leitor quem liga os pontos e por seu próprio traço cria algo novo. Ainda que este novo não seja “100% novo”, a carga de subjetividade inerente ao fenômeno da leitura garante o brilho no olhar de quem descobre algo e constrói para si mesmo um caminho.
Se me permitem o paralelismo com outra metáfora bíblica, se não fosse uma voz corajosa enunciar “faça-se a luz!”até o universo permaneceria o mesmo: misterioso, inapreensível e imenso, porém, na mais profunda escuridão.






[1] ASSIS, J.M. Machado de. Dom Casmurro. Cotia: Ateliê, 2008, p. 213.
[2] KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1985.
[3] SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da Leitura. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2011: p. 73.
[4] SANT’ANNA, Affonso Romano. Ler o mundo. São Paulo: Global, 2011.
[5] ORLANDI, Eni Pulccineli. Discurso & Leitura. São Paulo: Cortez, Unicamp, 2003.