Não havia tempo. Na verdade tudo começou exatamente
quando o tempo havia acabado. Quem nunca adiou a vida até percebê-la por meio
de uma morte, que atire a primeira pedra.
Os livros estavam por perto – apenas inacessíveis na
bagunça da casa: caixas de sapatos, caixas de envelopes, caixas de textos
fragmentados e fotocopiados na época da faculdade. Havia também inúmeras caixas
e gavetas precavidamente cheias. Papéis avulsos, recortes, clipes, fitas, fios,
quinquilharias a ocupar o espaço como estratégia sutil de autossabotagem:
enquanto não houvesse lugar para guardar, enquanto não arrumasse tudo, não
poderia escrever. Por isso também o computador vem sendo mantido no mais
caótico abismo em subpastas... Se alguém ousasse procurar um velho esboço, um
poema, um conto aparentemente inacabável, com certeza desistiria na metade do
caminho. A impressora, mantida a distância de tudo, fazia parte desse complexo
ambiente construído para sustentar seu mito mais intimista: não ter para não
perder.
E aí, o que acontece? Um homem – há anos luz de
distância – escreve um livro. Um título não notado em centenas de visitas a
bibliotecas e livrarias, até que em um insignificante momento, chega às mãos da
leitora. Não passava de uma edição barata, mas o subtítulo interno era
convidativo: Fahrenheit 451 – a
temperatura na qual o livro pega fogo e queima. Um livreto tão leve que foi
comprado quase sem se fazer perceber. Cabia na bolsa... e foi em comodismo
despretensioso que as primeiras palavras da epígrafe foram lidas: se te derem papel pautado, escreve de trás
para frente. Ela não fez questão de saber quem era Juan Ramón Jiménez.
Talvez nem tenha percebido que acabara de ultrapassar a fronteira. Entrava no
campo de verdades minadas de Ray Bradbury, como quem apenas abre a janela para
entrar ar – e se vê exposta ao mundo, sem proteção.
Isso tudo aconteceu em maio. Foram dois ou dez dias
para ler o livro? Não sei. Aliás, desde a primeira parte já não conseguia
distinguir entre ler e reler. Com o final de semestre chegando, nem tentou
evitar que o livro adentrasse aos seus estudos, ensaios e comentários. No mesmo
dia da decisão de conhecer mais aquele autor, o choque: o jornal dizendo “morre
Ray Bradbury”, já era junho! E veio o sentimento de o ter deixado a vida inteira
sozinho, sem com ele compartilhar seus mais tolos sonhos.
O caminho do outro livro – O zen e a arte da escrita – foi mais fácil e ao mesmo tempo ainda
mais doloroso. Esse, sim, lhe havia sido oferecido alguns meses antes... Mas
não havia tempo! Gavetas cheias, estantes desarrumadas, as caixas... As eternas
caixas que mantinham a casa em constante clima de mudança. Ao ver o rosto
bonachão do velho Ray no jornal, não sorriu. Quase pediu desculpas. Pediria se
pudesse. Seu silêncio foi uma promessa de leitura, mas não esperava que o homem
– já morto – fosse capaz de responder!
Não. Não anotei o dia. Ao ler o título do prefácio, já
me apedrejava – lê-lo é sentir o espírito se agarrando aos ossos – a voz dele, mesmo
traduzida em minha própria língua exigia algo mais difícil que esvaziar as
gavetas, mais difícil do que organizar a casa, mais difícil do que ler pilhas e
pilhas de artigos para a pesquisa acadêmica. Toda noite, o velho Ray, ao lado
da cama dizia que a escolha era inadiável: escrever ou morrer. Pior: mesmo
morrendo a cada noite, logo cedo ele continuava lá. Escrever ou escrever. Mais
uma vez, eu – a leitora – perdia tempo pensando e ele puxava minha orelha.
Lamentava episódios, arranhava angústias, ele parecia uma gravação contínua:
escrever sem pensar – apenas escrever!
A cada página algo doía: o fascínio pelas pessoas
idosas, o medo do que os outros pensam, a consciência da inutilidade... Até que
ele, do alto de sua sabedoria impressa e editada em tantas línguas, me disse algo
remoído muito antes de eu nascer: decidi,
muito tarde num dia, que nunca desistiria do meu primeiro sonho. Que raiva!
Qual era o meu primeiro sonho? Ser escritora?!
Quando vi, já estava no escuro porão. Quando eu era
criança – na verdade até a adolescência – escrevi cartas ingênuas ao meu irmão
morto, que nem sequer conheci. Eu me dirigia a ele como a um anjo da guarda.
Muitas vezes pedi que ele me buscasse e
me tirasse daquela casa, que me ajudasse com essa tarefa difícil que é
tornar-se nada. E somente agora percebo que, quando meu irmão morreu, ele não
virou “nada” – ele se tornou uma ideia, um norte, um apoio que me fez começar a
escrever. Que dizer dos outros irmãos, jamais conhecidos em vida: Van Gogh,
Oscar Wilde, Drummond, Mário de Andrade, Quintana, Clarice, Virgínia, Anne
Frank...!? A lista de meus companheiros é infinita. A partir dela construí a
noção de transcendência (ou o mais próximo que alcancei de uma crença ou
religiosidade). Nos momentos mais sombrios eu acreditava na morte como uma
espécie de portal para uma convenção literária. A eternidade era o único tempo
possível para encontrar todos, finalmente, conversar, ouvir suas respostas
depois de minhas perguntas serem feitas (sim, porque muitas vezes me chateio
quando nos livros as respostas vêm adiantadas e mal tenho tempo de tecer a
pergunta).
Então. Onde eu estava? Ah... claro. Não estava. A vida
foi sempre adiar – escrever aos mortos, talvez por covardia, escrever para não
correr o risco de alguém me responder. Mas ele, de repente, anos antes de eu
nascer, respondeu.
Disse o que fazer: se quero ser escritora – preciso
escrever. Se o objetivo fosse viver de escrever, tudo seria infinitamente mais
complicado. Mas não me permito sequer esse sonho. Quero apenas escrever.
Ok, ok... não sei se estou fazendo certo. Apenas
vomitei essas palavras e agora espero que ele me deixe dormir. Olho a data e
penso em outros fantasmas mais familiares. Hoje seria o aniversário da minha
bisavó Lídia – vó Lídia. Sei tão pouco dela. Lembro-me do seu sorriso.
Lembro-me da grandeza do seu silêncio quando saímos de madrugada para uma
viagem e vimos juntas a lua cheia, marcada por um aro colorido. Ela sorriu em
silêncio, assentindo com a cabeça (nunca se sabe qual cena vai ficar para
sempre na sua memória). Além desse dia, sei apenas das estampas coloridas de
flores pequenas em seus conjuntos de saia e camisa, da trança no cabelo branco
e do milagre adocicado do jiló frito que somente ela sabia fazer. Algo me diz
que minha avó não lia, mas guardo alguma fé de que ela estará presente naquela
eterna convenção.
São Paulo, 03 de setembro de 2012.
R.B.