Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Manuscrito a Felipa*


  


Ô, prosa...
Difícil falar de um livro de Adélia sem entrar em intimidades de mim mesma, na “sina” de ser mulher querendo se mostrar toda em escrita, quase em tom de oração.
Felipa está certa! E Deus também me livre de ser pedante, de fazer análise sistemática de cada trechinho, citando críticos e outros especialistas que mal conseguem dizer amém.
Vim aqui só pra dar a mão. Estar com ela em seu medo da morte, em seus mergulhos em memórias e comentários de uma gente eternamente viva, que continua a cutucar o sentimento de que tudo poderia ter sido diferente se a nossa coragem conseguisse ultrapassar o limite decidido, da conveniência e até da espera de solução abençoada. Acha que estou sonhando? Não... Não  estou sonhando, não...
Aliás, sonho é aquela coisa de beleza revirada que xeretei no caderno dela... Confundindo as idades, os amores e as certezas que todo o mundo guarda como regra de vida. Nos Manuscritos de Felipa, a gente sabe que está diante de algo tão verdadeiro, tão forte, que pode até ser ficção.
Quem é Felipa?, ah... Felipa é a mulher do livro, uai! E se a pessoa precisa tanto distinguir quem é autor, quem é narrador... Pode ir lá pra Usp, ler Benjamin, Wellek  e Warren... Pode ir ter certeza ou ficar com dúvida à vontade...  Hoje, eu já disse: eu não estou aqui pra isso não... Basta para mim saber que cabem ali mulheres que somos ou que não chegamos a ser.
Ela filosofa com o pé no chão, como todo mundo, cedo ou tarde, se olha e faz. Diz que “só fala o que dói  e grito todo mundo entende”. Mas por que é que a gente gosta disso, hein?
Ai, Felipa... Eu nem deveria lhe dizer: peguei o livro por acaso, e no mesmo dia, vi um pedaço de um filme na televisão. Um moço falava de Cabala pra uma menininha que escrevia as letras no escuro. Ele dizia que se ela estivesse em sintonia com sei-la-o-quê... a escrita seria mais que uma forma de oração, ela seria instrumento para a palavra de Deus! Quer saber se eu acredito nisso?
Ah... Não sei, não... Depois vi mais um pedacinho de outro canal, com o menino Em busca da Terra do Nunca – o finalzinho do filme, menos de quinze minutos – e voltei a ler, bem na parte em que fala de acordar de noite pra rezar! Ai, que me deu até um negócio! Será que só eu vi o fio da vida nas três coisas?
Sei lá! Por garantia, catei o primeiro caderno e comecei a escrever... Eu não tinha outra solução. Ia morrer engasgada com estas palavras e seria cúmplice daqueles que matam o mundo por “inanição de palavras”... Eh, Felipa, de onde é que você tira essas coisas, hein?
O que sei, é que quando terminei o meu texto, lembrei do Gênesis, daquela parte bonita de Deus criando o mundo em palavras, e principalmente de seu refrão satisfeito: “e Ele viu que era bom”.

*Sobre o livro  Manuscritos de Felipa, de Adélia Prado (Siciliano, 1999).