Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Formação e transformação


“[...] Toda família – sem estudar pedagogia – sabe disso: os filhos precisam tornar-se autônomos, e, para tanto, precisam da presença dos pais. Entretanto, os pais sabem que, se com o tempo, a autonomia não se realiza, o projeto pedagógico falhou. [...]”

“[...] A qualidade do Estado não está nele, mas na cidadania que o sustenta. Não se pode ter Estado melhor que a cidadania que está por trás dele.”
(Pedro Demo)




Há algum tempo tenho refletido sobre a importância das epígrafes e citações. Mas o exemplo que me trouxe à escrita desencadeia urgências. Aconteceu que um dia desses, muito ao acaso, ao ler um projeto da área de museologia, encontrei um trecho do livro Conhecer & aprender, de Pedro Demo. Era uma breve passagem sobre como a dialética encara os discursos contraditórios.  Fui procurar o livro, mas no caminho me interessei pelo título de outro: Ironias da educação – mudança e contos sobre mudança[1].  Em suas observações sobre a pedagogia e a contradição performativa (fazer discurso que se destrói a si mesmo), vi o quanto este livrinho, que jamais me foi apresentado na faculdade ou em qualquer outro curso, teria interferido de maneira fundamental no início de minha atuação como educadora.
O texto é, em síntese, “um tapa na cara” ou “um soco no estômago”. Uma leitura com gosto de café amargo, que acorda o leitor e o arremessa para muito longe qualquer discurso cor-de-rosa sobre a educação no Brasil (supondo que fosse possível algum discurso cor-de-rosa em nossa condição). Para muitos professores, certamente, o texto tem o efeito de uma metralhadora, derrubando todos, em todos os lados... Aliás, é difícil ficar em pé quando ele atira o primeiro o axioma-granada: “quem muito prega a moral, mais dela precisa”. Os estilhaços atingem a pedagogia, os professores, as faculdades, o Estado, a sociedade e, é claro, a educação.   
À medida que a leitura avança, a fumaça abaixa e o leitor percebe que o estrago não foi feito pela bomba... Me lembrei da música do Caetano, em que se vê algo fora da ordem nas “ruínas de uma escola em construção”.
De fato, neste livro publicado em 2000, o sociólogo discute um panorama ainda atual e o faz de maneira bem fundamentada. Confronta teorias, discursos e práticas. Registra mazelas notórias, não somente sobre as deficiências na formação de professores, mas também na atitude da sociedade e do Estado diante do quadro.
As três partes do livro (Conto-do-vigário, Sobre mudança e Resgate do professor) mostram como os discursos de transformação social, tão enfatizados por todos esses agentes, são contraditórios ou vazios quando se trata de “transformar” ou “concretizar” o que pregam. Pedro Demo parte do discurso abstrato da entidade “pedagogia”, mas, como não poderia deixar de ser, rapidamente chega ao cidadão e ao professor.

As fissuras da pedagogia e do professor

A crítica à pedagogia vem no sentido de que ela não se permite a inovação enunciada aos quatro ventos, alimentando o “pacto de mediocridade”, inclusive, por meio de cursos e diplomas facilitados. Demo aponta a necessidade urgente não de “reforma”, mas de “transformação”. Comenta que neste novo contexto histórico, mais do que nunca, o foco deve estar na aprendizagem e não na passagem de informação – mesmo porque os meios eletrônicos já são os responsáveis por isso. Cabe ao professor o papel de “facilitador maiêutico”. Para isso, é indispensável que ele tenha voz própria, projeto próprio, que saiba aprender para ensinar a aprender.[2]
Não é preciso ir longe para ver o quanto o sujeito-professor tem sido destituído de seu papel. O autor destaca que há um quadro tão depreciativo a ponto de muitos professores se mostrarem “carentes de elogio” e “resistentes à crítica e à autocrítica”.[3] Trata-se de uma situação bastante complexa, gerada e alimentada por fatores sócio-econômicos, como baixos salários e condições desumanas que impedem o profissional de se realizar e de se permitir o estudo cotidiano. Algo, aliás, que deveria ser inerente  trabalho educativo.
Sem dúvida, nas palavras de Demo, “o salário precisa indicar inequivocadamente a dignidade da sociedade em que [o professor] atua, por conta do compromisso com a cidadania e respectiva ética. Assim sendo, a contradição flagrante está em que não se pode trabalhar a cidadania de maneira adequada utilizando quem ainda não é cidadão pleno. É absurdo total alocar o professor entre os excluídos. [...]”[4] Por outro lado, o autor também denuncia atitudes inaceitáveis que compatibilizam a equação baixo salário = baixo compromisso com a aprendizagem dos alunos. [5]
Para Pedro Demo, e para outros pesquisadores como Viviane Mosé, não é possível avançar em Educação sem uma transformação radical que começa por abolir o obsoleto modelo de “dar aula”. O compromisso de difundir tais constatações vêm no sentido de alargar horizontes, rompendo com o ciclo de “imbecilização” que impede a cidadania.

Alguém se lembra do que é cidadania?
O livro Ironias da Educação é denso, apesar de suas poucas páginas. Discute contradições gritantes como a passividade dos professores quanto à própria formação, condena posturas alienadas e reprodutivas e, principalmente, convoca-nos à responsabilidade social diante deste quadro decadente.
Colocar a aprendizagem dos alunos como foco é, antes de tudo, priorizar a autonomia cidadã.  Encarar eterna incompletude do conhecimento como fato e não obstáculo. Posicionar-se a respeito dos problemas e estar disposto ao trabalho social exigido para alcançar soluções. É abrir espaço para a crítica e para a autocrítica, saindo da posição defensiva, pois “o lado mais importante da crítica está justamente em seu lado negativo, desconstrutivo”, como diz o autor.
“[...] Não se trata, assim, apenas de cidadania, mas de cidadania instrumentada pelas habilidades do conhecimento desconstrutivo. [...]”
Enfim, uma citação me chegou quase aleatoriamente, tomou-me pela mão e me fez caminhar um bocado. Foi o primeiro contato com este pensador que certamente me trará outras leituras, atitudes e reflexões. Registrar este encontro, mais do que compartilhar o conteúdo, é alimentar a saudável cadeia das citações...
A quem se interessar, indico o blog:  http://pedrodemo.blog.uol.com.br.






[1] DEMO, Pedro. Ironias da educação – mudança e contos sobre mudança. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
[2] P.91.
[3] P.37.
[4] P.79.
[5] P.34.