Ícaro - R.B. |
É
comum ouvir por aí que o tempo parece andar mais depressa, que os dias andam
cada vez mais repletos de afazeres e que aquele tal de “ócio criativo” é um
luxo, ao qual poucos têm condições de se dedicar (e entre esses poucos,
raríssimos, de fato, se dispõem a fazê-lo).
No
meio dessa correria percebi que meu blog praticamente órfão há mais de 4 meses!
Ando ocupada, lendo e escrevendo, sim, mas por outros motivos e para outros
fins. É um esforço que faço hoje para pertencer a uma categoria outra, não
citada acima: “a dos que não dispõem de tempo, mas dão um jeito de criar e
escrever”.
Sempre
me deparo com questões muito parecidas, pois ando obcecada pelo tema leitura, e
no caminho de minha pesquisa encontro preciosidades que não me deixariam dormir
sem registrar um pensamento. Uma delas, foi a citação de Frederic
Litto[1]
em seu blog sobre “tecnologia educacional” para ilustrar a resistência dos
profissionais a incorporar os recursos digitais em seus métodos pedagógicos.
“Qualquer
coisa que já estiver no mundo quando você nascer é normal e ordinária e
simplesmente uma parte da maneira pela qual o mundo funciona. Qualquer coisa
inventada no período em que você tem de quinze a trinta e cinco anos é nova,
excitante e revolucionária, e provavelmente lhe oferece a oportunidade de
seguir uma carreira nela. Qualquer coisa inventada depois que você chegou a
trinta e cinco anos é contra a ordem natural das coisas.”
Esse trecho de O guia do mochileiro das Galáxias, além de me despertar a curiosidade
sobre o livro, me fez ver o quanto eu mesma faço parte de uma geração que tem
dificuldades com os recursos digitais. Mais do que de manuseá-los como
ferramentas, percebo em mim um desconforto, na maioria das vezes não
compartilhado por amigos e colegas de trabalho sempre tão atentos a tudo que
acontece na rede – sejam notícias, debates, frivolidades, ou acontecimentos
(para eles) potencialmente imperdíveis, expostos em diversas páginas pessoais.
A primeira impressão que posso ter é a de que há algo muito errado comigo...
parece óbvio. Sou antissocial, reacionária, retrógrada... (Ainda não vi ninguém
usar estes termos em relação a mim... mas se os usaram, eu também não teria
como sabê-lo, pois estou por fora de todos esses espaços de discussão).
Depois, lendo mais uma vez Jorge Larrosa Bondía,
desta vez, aliás, em suas autocitações, encontrei mais um excerto precioso:
“[...] a maioria de nós vive encurralada, em espaços universitários
postos a serviço do governo e completamente mercantilizados. Como se fosse
pouco, o imperativo dos dispositivos de ‘pesquisa’ e das constrições da
‘carreira acadêmica’ nos obrigam a escrever, e a publicar, de uma forma
completamente absurda, inútil e enlouquecida. Escrever (e ler) se converteram
em práticas espúrias e mercenárias encaminhadas à produção de textos
orientados, sobretudo, aos comitês de avaliação e aos mecanismos financiadores
de projetos de pesquisa. As formas institucionalizadas de escrever expulsam os que
têm língua, os que pensam o que dizem e os que não se acomodam às formas
coletivas e gregárias de trabalho que se nos impõem. Nesta época de indigência
deveria bastar ler. E, se trabalhamos na universidade, deveria bastar
transmitir o que lemos. Deveria bastar dar a ler. E tratar de propiciar a
leitura, a escritura, a conversação e o pensamento. Como naqueles tempos em que
ainda se estudava.” [2]
Estou em dúvida: talvez hoje eu tenha acordado
nostálgica, pensando num tempo que para mim nem sequer existiu... Um tempo de “total”
disponibilidade para escrever, pensar, produzir, sem que para isso eu tivesse
que sacrificar meu descanso ou atrasar as minhas “obrigações”.
Por outro lado, o texto de hoje também vem na
contramão da nostalgia. É movido pela pressa ou pela pressão de “Oh! Meu Deus!
O blog está lá e não publiquei nada...!” É uma pressão estranha, pois essa
página tem pouco mais que uma dúzia de leitores e, entre eles, alguns convivem
e conversam comigo. Pouquíssimas vezes comentamos pessoalmente nossas leituras (isso
não chega a ser bom nem ruim – apenas comprova que a tal pressão por escrever
não vem de fora. É sem motivo aparente, pois eu até consideraria justa se fosse
uma pressão dos leitores).
Percebo que nem meu leitor imaginário (a mais
compreensiva das pessoas – depois do meu terapeuta, claro...) chegaria ao ponto de me cobrar algo escrito, ainda mais assim, "pra ontem". Sou eu mesma.
Então, por que me apresso ao ver o blog
abandonado?
Por outro lado, por que tantas vezes, mesmo
vendo-o assim não escrevo?
...
Percebi que só reconheço o que escrevo
respeitando meu próprio ritmo. E como tenho 36 anos, desconfio que esteja
entrando na categoria que estranha o mundo novo. Eu até tenho tentado me
adaptar a essa “nova ordem natural das coisas”, mas é difícil.
...
Um dia desses, sabendo dos meus rabiscos expostos
em outra página, alguém me perguntou se me realizo mais escrevendo ou
desenhando. Naquele momento me safei da pergunta com um cômodo “depende...”
como quem diz “às vezes, um, outras vezes, outro...” Assim como meus raros
leitores, a pessoa ficou satisfeita com a resposta. Eu não.
Fiquei matutando sobre isso até encontrar aquela
fala de Larrosa Bondía: “deveria bastar transmitir o que lemos. Deveria bastar
dar a ler.” Acho que entre desenhar e escrever, me realizo lendo. Especialmente
nos raros dias de folga, quando posso acordar devagar, sem relógio, sem hora
marcada... dias em que me dou ao luxo de ler poesia no desjejum e até ficar na
cama, lendo até pegar no sono de novo. Sem obrigação, sem imperativos... Apenas
por gosto.
E, no entanto, nasce naturalmente nesse “ler à
toa” a minha necessidade profunda de escrever, e de me dar a ler. Escrevo, leio, escrevo, e assim, a cada dia, meu mundo sempre começa de novo.
[1] ADAMS, Douglas. O guia do
mochileiro das galáxias. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. Citado por
Frederic Litto no comentário sobre tecnologia educacional, no blog do jornal O Estado de São Paulo (http://blogs.estadao.com.br/rolando-na-rede/),
em 03/07/2011, às 17h 52min. Acesso em 09/07/2012, às 13h45.
[2] BONDÍA, Jorge Larrosa. “Palavras desde o limbo. Notas para outra
pesquisa na Educação ou, talvez, para outra coisa que não a pesquisa na
Educação”. In: Revista Teias. V.13,
n. 27, p.289. Neste texto o autor comenta uma autocitação retirada de seu livro
de 2010, Ferido de realidade. Notas
sobre as linguagens da experiência, p.115.