Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Flashes do presente no passado




“Bem sabes o que é a dor de escrever. Essa tortura que o papel virgem põe n’alma de um escritor incipiente. É uma angústia intraduzível, essa de que fico possuído à vista do material para a escrita. As coisas vêm ao cérebro, vemo-las bem, arquitetamos a frase, e quando a tinta escreve pela pauta afora – oh! que dor! – não somos mais nós que escrevemos, é o Pelino Guedes”.
 (Diário íntimo, 1905, sem data).


“Há meses inaugurou-se a iluminação elétrica em uma qualquer cidade. Para evitar desastres pessoais, o chefe da usina mandou pôr o seguinte aviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores etc.:
‘Perigo! Quem tocar nestes fios cairá fulminado. Pena de prisão e multa para os contraventores.’
Fazer um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fio elétrico...” 
(Diário íntimo, 1910, sem data).

Acaba de ser lançado o livro Lima Barreto: uma autobiografia literária (Editora 34, 2012). O volume organizado por Antonio Arnoni Prado, professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, mescla vários escritos de ficção e não ficção, com notas explicativas para identificar personagens e situações.
O primeiro trecho acima é da carta de Lima Barreto a Mário Galvão – repórter do Diário do Comércio que viria a ser um dos fundadores da Associação Brasileira da Imprensa. Essas palavras foram escritas em 16 de novembro de 1905 e são um exemplo de como a leitura nos faz imergir em contextos, sentimentos e expressões que beiram os limites da linguagem. A figura de Pelino Guedes, uma espécie de “símbolo da intolerância e da gramatiquice prepotente”, como se vê, aparece em outros momentos e é um dos muitos elos entre a vida pessoal e a obra de Lima Barreto. Prado comenta que depois de um desentendimento com Pelino – à época, Diretor Geral da Justiça do Rio de Janeiro – esse homem se tornou uma referência convertida em personagens como o Xisto Beldroegas, do romance Gonzaga de Sá (1919), e o ministro J. F. Brochado, de Numa e Ninfa (1915).
Não seria o primeiro episódio em que a relação entre vida e obra é especialmente notável no caso de Lima Barreto.  Aliás, outros livros recentes reforçam essa peculiaridade. Entre eles: Contos completos de Lima Barreto, (Companhia das Letras, 2010), com organização de Lilia Moritz Schwarcz; e o volume Lima Barreto, da coleção Retratos do Brasil Negro (Selo Negro, 2011), no qual Luiz Silva (Cuti) mostra a atualidade dos problemas apontados e enfrentados pelo escritor no início do século XX.
 As edições acima e o lançamento da “autobiografia literária” reafirmam a experiência de que um bom livro leva a outro, sem qualquer necessidade de ordem cronológica. São leituras que despertam ou intensificam a vontade de saber mais. De conhecer e de mais uma vez reconhecer o artista, o intelectual, o cidadão crítico, uma mente libertária tantas vezes rechaçada pelo preconceito.

“Nunca me meti em política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para mim a política, conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os povos felizes. Desde menino,  pobre e oprimido,  vejo a ‘política’ do Brasil ser justamente o contrário. Ela tende para tornar a vida incômoda e os povos infelizes. Todas as medidas de que os políticos lançam mão são nesse intuito. [...]”  
(Da crônica “Palavras dum simples”, 1922 – em Marginália, 1953).

“Quando me julgo – nada valho; quando me comparo sou grande.” 
(Diário íntimo, 1905, sem dataç 26/04/1904; 01/01/1905)
A estrutura de nove capítulos, do “autorretrato” aos “outros retratos”, passa por temas como o narrador, os personagens, a crítica, a arte, a morte e a penitência, entre outros. Chama a atenção o caráter de bricolagem da obra que, com delicadeza e discrição,  faz com que o leitor se sinta, ele mesmo, um curioso revirando papéis de um baú alheio. Nessa colcha de retalhos, quase nem se repara o quanto nos deixamos conduzir pelo olhar do organizador.  Ao nos confrontarmos com preciosidades do Diário íntimo – por vezes palavras soltas, a intenção de um escrito – ouvimos em alguma medida sua voz embargada, mas, logo adiante, a autocrítica, a consciência e a perspicácia diante de pessoas do seu tempo.
Cabe destacar, quanto a isso, as palavras de João Antônio, também citadas na autobiografia: “Lima Barreto, a bem dizer, deu de ombros à própria glória literária. Não pensou nela. Escrevia por desafogo. Romances, contos e crônicas que publicou,  mantiveram caráter de protesto. Contra as rotinas, os preconceitos, contra a tolice, as frivolidades, contra o ramerrão, contra as normas e regras, que só o tempo consagrara.  Não houve nas letras brasileiras, escritor tão revolucionário” (Jornal do Brasil, 17 de junho de 1978).
A lista de comentários sobre o autor traz a voz de outras personalidades como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado, esses, aliás, valorizando a ousada perspectiva histórica e social adotada desde as primeiras publicações. Nomes como Antonio Candido, Alfredo Bosi e outros também estão registrados entre os comentaristas.
Talvez seja oportuno para lembrar as palavras de João Antonio, na apresentação de um livro de crônicas escolhidas (Ática,1995): “apesar de algumas tentativas sérias de redescobrimento de Lima Barreto [...] há sempre pontos a ressaltar na importância do mulato de Todos os Santos, pois vão sendo esquecidos novamente, logo após esses “redescobrimentos”. [...]”
“Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Despeço-me de um por um dos meus sonhos.” 
(Diário íntimo, 20/04/1914)
O fato é que após 90 anos de sua morte, cá estamos lendo até seus mais íntimos lamentos. Suas reivindicações e revoltas continuam atuais, bem como suas esperanças e seu exemplo de compromisso com a verdade.