Muitas vezes deixo de escrever, não por não ter o que dizer, mas por não encontrar – nem entre leituras e escritos – as palavras que preciso naquele momento exato. Esta tolice cria um círculo vicioso: por procurar a palavra, não escrevo. Por esperar o momento, não publico. No entanto, conforta-me a persistência deste ímpeto, desta necessidade vital de dizer não-sei-o-quê, nem sei a quem. Há algo certo? Que o texto se sustente na exata medida de seu próprio corpo.
(Rita Braga)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O que está e ao mesmo tempo não está nos livros


Umberto Eco disse que “ler nos ensina a não acreditar nos livros”. A frase chama atenção porque cutuca o tabu da sacralidade do livro com uma verdade paradoxal e explícita. Não é raro ouvir discursos nos quais o suporte ou a tecnologia em si encerra uma garantia de valor ou certeza.
Historicamente, leituras unívocas foram motivo de guerras, injustiças e atrocidades. Por mais que os discursos dominantes também sejam um fato, sempre há espaço para novas reflexões a respeito da leitura como um fenômeno essencialmente humano que, por essa condição existencial, também se transforma no tempo, no espaço, nas tecnologias e até na fisiologia, como se tem notado nos leitores da Era Digital. 
O ato de ler, de modo geral, não deixa marcas. Os registros e comentários gerados por uma leitura são uma parcela ínfima das possibilidades interpretativas do texto. Lemos o objeto livro (ou qualquer outro suporte) com suas nuances, contextos e referências entrelaçadas às inúmeras relações subjetivas que o triângulo leitor-livro-autor pode abarcar. 
A leitura é um ato paradoxal por excelência. Ela precede e ultrapassa o texto, seja pelas experiências que desencadearam a escrita, seja pelos desdobramentos que ela ativa no pensamento do leitor. 
No cotidiano do trabalho educativo, o senso comum vem constantemente à tona. Muitas vezes ouço estudantes (e até educadores) identificando a escrita como “uma forma de comunicação”. Já a leitura, conforme as pesquisas do IPL (Instituto Pró-Livro) apontam, costuma ser citada mais frequentemente como “uma forma de estudo”. Há nesses enunciados uma “passividade” atribuída à leitura. Isso nos leva a pensar que o evidente reconhecimento da escrita como ato criativo, no qual o autor se expõe, não costuma ser sequer correlacionado quando o foco é transferido para a outra parte do mesmo processo. Mas será que ler é apenas “receber” o que o outro produziu?
Basta pensar um segundo para notar que o caráter criativo da leitura como produção de sentido é inegável. Mas por que tanta gente “demora” esse segundo para pensar? Talvez essa percepção resulte da especificidade da leitura em nosso tempo. Trata-se de um tema que requer outro tipo de olhar, inclusive exigindo do leitor sua presença como leitor-observador de si mesmo, em um discurso íntimo que corre paralelamente ao texto. Somente cada leitor, em sua subjetividade, pode afirmar ou não sua aceitação diante das opiniões escritas; somente ele pode descrever seus caminhos, seus insights, suas dúvidas e divagações.
Acontece, é claro, de alguém comentar o que ouviu de outro leitor como, aliás, eu fiz aqui ao iniciar esse texto. Entramos no labirinto da “leitura da leitura”, cientes de que estamos cercados pelo abismo intransponível da subjetividade a cada interpretação.

Ler, tanto quanto escrever ou qualquer outro meio, é uma forma de comunicação na qual o sujeito vai em direção ao outro, mas sem abrir mão de olhar para si mesmo. Nem sempre são nítidos os limites entre emissor e receptor. 
Ao falar dos livros que lemos, de como lemos (ou não lemos), tentamos, de alguma maneira, cavar o espaço invisível das entrelinhas alheias para encontrar algo nosso. É ser um arqueólogo em busca de artefatos produzidos por um outro, na maior parte das vezes, inalcançável. Somos obrigados a lidar com cacos, resquícios, fragmentos...  Ler é lidar com esses flashes, construir essas pontes.
Em ideia, ou mesmo na pessoa que escreve, o leitor é um ilustre e complexo sujeito. É o verdadeiro responsável por dar existência e sentido aos livros, embora nem sempre ele reconheça seu imenso poder criador.