Umberto Eco disse que “ler nos
ensina a não acreditar nos livros”. A frase chama atenção porque cutuca o tabu
da sacralidade do livro com uma verdade paradoxal e explícita. Não é raro ouvir
discursos nos quais o suporte ou a tecnologia em si encerra uma garantia de
valor ou certeza.
Historicamente, leituras unívocas
foram motivo de guerras, injustiças e atrocidades. Por mais que os discursos
dominantes também sejam um fato, sempre há espaço para novas reflexões a
respeito da leitura como um fenômeno essencialmente humano que, por essa
condição existencial, também se transforma no tempo, no espaço, nas tecnologias
e até na fisiologia, como se tem notado nos leitores da Era Digital.
O ato de ler, de modo geral, não deixa marcas. Os registros e
comentários gerados por uma leitura são uma parcela ínfima das possibilidades
interpretativas do texto. Lemos o objeto livro (ou qualquer outro suporte) com
suas nuances, contextos e referências entrelaçadas às inúmeras relações
subjetivas que o triângulo leitor-livro-autor pode abarcar.
A leitura é um ato paradoxal por excelência. Ela precede e ultrapassa o
texto, seja pelas experiências que desencadearam a escrita, seja pelos
desdobramentos que ela ativa no pensamento do leitor.
No cotidiano do trabalho educativo, o senso comum vem constantemente à
tona. Muitas vezes ouço estudantes (e até educadores) identificando a escrita
como “uma forma de comunicação”. Já a leitura, conforme as pesquisas do IPL
(Instituto Pró-Livro) apontam, costuma ser citada mais frequentemente como “uma
forma de estudo”. Há nesses enunciados uma “passividade” atribuída à leitura.
Isso nos leva a pensar que o evidente reconhecimento da escrita como ato
criativo, no qual o autor se expõe, não costuma ser sequer correlacionado
quando o foco é transferido para a outra parte do mesmo processo. Mas será que
ler é apenas “receber” o que o outro produziu?
Basta pensar um segundo para notar
que o caráter criativo da leitura como produção de sentido é inegável. Mas por
que tanta gente “demora” esse segundo para pensar? Talvez essa percepção
resulte da especificidade da leitura em nosso tempo. Trata-se de um tema que
requer outro tipo de olhar, inclusive exigindo do leitor sua presença como
leitor-observador de si mesmo, em um discurso íntimo que corre paralelamente ao
texto. Somente cada leitor, em sua subjetividade, pode afirmar ou não sua
aceitação diante das opiniões escritas; somente ele pode descrever seus caminhos,
seus insights, suas dúvidas e divagações.
Acontece, é claro, de alguém
comentar o que ouviu de outro leitor como, aliás, eu fiz aqui ao iniciar esse
texto. Entramos no labirinto da “leitura da leitura”, cientes de que estamos
cercados pelo abismo intransponível da subjetividade a cada interpretação.
Ler, tanto quanto escrever ou
qualquer outro meio, é uma forma de comunicação na qual o sujeito vai em
direção ao outro, mas sem abrir mão de olhar para si mesmo. Nem sempre são
nítidos os limites entre emissor e receptor.
Ao falar dos livros que lemos, de como lemos (ou
não lemos), tentamos, de alguma maneira, cavar o espaço invisível das
entrelinhas alheias para encontrar algo nosso. É ser um arqueólogo em busca de
artefatos produzidos por um outro, na maior parte das vezes, inalcançável.
Somos obrigados a lidar com cacos, resquícios, fragmentos... Ler é lidar
com esses flashes, construir essas pontes.
Em ideia, ou mesmo na pessoa que
escreve, o leitor é um ilustre e complexo sujeito. É o verdadeiro responsável
por dar existência e sentido aos livros, embora nem sempre ele reconheça seu
imenso poder criador.