“Bem
sabes o que é a dor de escrever. Essa tortura que o papel virgem põe n’alma de
um escritor incipiente. É uma angústia intraduzível, essa de que fico possuído
à vista do material para a escrita. As coisas vêm ao cérebro, vemo-las bem,
arquitetamos a frase, e quando a tinta escreve pela pauta afora – oh! que dor!
– não somos mais nós que escrevemos, é o Pelino Guedes”.
(Diário íntimo, 1905, sem data).
“Há
meses inaugurou-se a iluminação elétrica em uma qualquer cidade. Para evitar
desastres pessoais, o chefe da usina mandou pôr o seguinte aviso junto aos
dínamos de alta voltagem, os transformadores etc.:
‘Perigo!
Quem tocar nestes fios cairá fulminado. Pena de prisão e multa para os
contraventores.’
Fazer
um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fio elétrico...”
(Diário íntimo, 1910, sem data).
Acaba
de ser lançado o livro Lima Barreto: uma
autobiografia literária (Editora 34, 2012). O volume organizado por Antonio
Arnoni Prado, professor do Departamento de
Teoria Literária da Unicamp, mescla vários escritos de ficção e não ficção, com
notas explicativas para identificar personagens e situações.
O
primeiro trecho acima é da carta de Lima Barreto a Mário Galvão – repórter do Diário do Comércio que viria a ser um
dos fundadores da Associação Brasileira da Imprensa. Essas palavras foram
escritas em 16 de novembro de 1905 e são um exemplo de como a leitura nos faz
imergir em contextos, sentimentos e expressões que beiram os limites da
linguagem. A figura de Pelino Guedes, uma espécie de “símbolo da intolerância e
da gramatiquice prepotente”, como se vê, aparece em outros momentos e é um dos
muitos elos entre a vida pessoal e a obra de Lima Barreto. Prado comenta que
depois de um desentendimento com Pelino – à época, Diretor Geral da Justiça do
Rio de Janeiro – esse homem se tornou uma referência convertida em personagens
como o Xisto Beldroegas, do romance Gonzaga
de Sá (1919), e o ministro J. F. Brochado, de Numa e Ninfa (1915).
Não
seria o primeiro episódio em que a relação entre vida e obra é especialmente notável
no caso de Lima Barreto. Aliás, outros
livros recentes reforçam essa peculiaridade. Entre eles: Contos completos de Lima Barreto, (Companhia das Letras, 2010), com
organização de Lilia Moritz Schwarcz; e o volume Lima Barreto, da coleção Retratos do Brasil Negro (Selo Negro,
2011), no qual Luiz Silva (Cuti) mostra a atualidade dos problemas apontados e
enfrentados pelo escritor no início do século XX.
As edições acima e o lançamento da “autobiografia literária” reafirmam a experiência
de que um bom livro leva a outro, sem qualquer necessidade de ordem cronológica.
São leituras que despertam ou intensificam a vontade de saber mais. De conhecer
e de mais uma vez reconhecer o artista, o intelectual, o cidadão crítico, uma
mente libertária tantas vezes rechaçada pelo preconceito.
“Nunca me meti em
política, isto é, o que se chama política no Brasil. Para mim a política,
conforme Bossuet, tem por fim tornar a vida cômoda e os povos felizes. Desde
menino, pobre e oprimido, vejo a ‘política’ do Brasil ser justamente o
contrário. Ela tende para tornar a vida incômoda e os povos infelizes. Todas as
medidas de que os políticos lançam mão são nesse intuito. [...]”
(Da crônica “Palavras dum simples”, 1922 – em
Marginália, 1953).
“Quando me julgo –
nada valho; quando me comparo sou grande.”
(Diário
íntimo, 1905, sem dataç 26/04/1904; 01/01/1905)
A
estrutura de nove capítulos, do “autorretrato” aos “outros retratos”, passa por
temas como o narrador, os personagens, a crítica, a arte, a morte e a
penitência, entre outros. Chama a atenção o caráter de bricolagem da obra que,
com delicadeza e discrição, faz com que
o leitor se sinta, ele mesmo, um curioso revirando papéis de um baú alheio.
Nessa colcha de retalhos, quase nem se repara o quanto nos deixamos conduzir pelo
olhar do organizador. Ao nos confrontarmos
com preciosidades do Diário íntimo –
por vezes palavras soltas, a intenção de um escrito – ouvimos em alguma medida
sua voz embargada, mas, logo adiante, a autocrítica, a consciência e a
perspicácia diante de pessoas do seu tempo.
Cabe
destacar, quanto a isso, as palavras de João Antônio, também citadas na
autobiografia: “Lima Barreto, a bem dizer, deu de ombros à própria glória
literária. Não pensou nela. Escrevia por desafogo. Romances, contos e crônicas
que publicou, mantiveram caráter de
protesto. Contra as rotinas, os preconceitos, contra a tolice, as frivolidades,
contra o ramerrão, contra as normas e regras, que só o tempo consagrara. Não houve nas letras brasileiras, escritor
tão revolucionário” (Jornal do Brasil,
17 de junho de 1978).
A
lista de comentários sobre o autor traz a voz de outras personalidades como
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado, esses, aliás, valorizando a ousada
perspectiva histórica e social adotada desde as primeiras publicações. Nomes
como Antonio Candido, Alfredo Bosi e outros também estão registrados entre os
comentaristas.
Talvez
seja oportuno para lembrar as palavras de João Antonio, na apresentação de um
livro de crônicas escolhidas (Ática,1995): “apesar de algumas tentativas sérias
de redescobrimento de Lima Barreto [...] há sempre pontos a ressaltar na
importância do mulato de Todos os Santos, pois vão sendo esquecidos novamente, logo
após esses “redescobrimentos”. [...]”
“Não tenho editor,
não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros
pensamentos. Despeço-me de um por um dos meus sonhos.”
(Diário íntimo, 20/04/1914)
O
fato é que após 90 anos de sua morte, cá estamos lendo até seus mais íntimos
lamentos. Suas reivindicações e revoltas continuam atuais, bem como suas
esperanças e seu exemplo de compromisso com a verdade.